Dando continuidade a primeira publicação “Divertimento Garantido e Malvisto na Sociedade” agora com a intenção de refletir sobre um dos materiais culturais (moedas, afrescos e lamparinas) presente na sociedade da época (Roma antiga). Uma peça de metal, com duas faces, pode conter diferentes perspectivas de análise. Algumas moedas da Antiguidade detêm indícios econômicos, políticos, sociais e cunhagens míticos, estéticos, religiosos (MARQUETTI; CARLAN; FUNARI, 2015).
Os estudos das moedas trouxeram o próprio desenvolvimento da historiografia. Com a história social a moeda é vista como objeto de operações (troca e compra de mercadoria); e na história cultural elas são objeto de investigação das manifestações e suas relações de poder existentes nas representações imagéticas das moedas. A partir da pesquisa histórica realizada foi percebido que no material coletado a respeito da produção e sistematização monetária no período imperial, que segundo Cláudio Umpierre Carlan e Pedro Paulo Abreu Funari e (2012):
[…] baseou-se no grego, mas teve como característica única a difusão por uma extensa área, sem associar-se a cidades específicas, como foi o caso nas moedas gregas. Essa particularidade era o resultado, em primeiro lugar, de como o próprio mundo romano se constituiu, desde o início, por agregação de pessoas de diferentes origens. Por isso mesmo, o sistema monetário romano adquiriu feições modernas, em certo sentido, ao ter instituído moedas que eram usadas em uma área imensa, emitidas de maneira controlada pela autoridade monetária unificada.
(p. 51).
Sendo assim, um dos artefatos arqueológicos de circulação pública em todo território romano eram as moedas denominadas imperiais. Interessante ressaltar que o caráter heterogêneo desta cultura material leva estabelecer um diálogo iconográfico, para ser possível fazer uma leitura imagética e perceber valores sociais e políticos existentes nas moedas. Elas são capazes de difundir mensagens pela imagem e por sua fácil circulação pelo território, que segundo Carlan e Funari (2012) faz desta cultura material uma fonte democrática de informação e um objeto disseminador de ideias e de anunciação política eficaz. Em uma das faces observa-se o numeral romano e na outra a figura da autoridade política (o imperador) que é uma autoridade que a estabelece, determina, outorga o valor financeiro, fabricação das moedas e estipula a distribuição por determinado território, afinal “valores políticos estão intrínsecos em sua circulação” (MARQUETTI; CARLAN; FUNARI, 2015, p. 115). A presença da face evidencia o desejo de demonstrar e centralizar o poder, reforçado por meio da representação da coroa de louros na forma de uma homenagem póstuma frente as vitorias em batalhas apoteóticas na antiga Roma (CARLAN; FUNARI, 2012). Como por exemplo o caso da representação a seguir (figura 1).

Figura 1: Tessera, Augustus. Fonte: DUGGAN, 2017.
No recorte inicial da pesquisa foi idealizado organizar em tabelas o material coletado considerando posições sexuais e seus padrões imagéticos dos atos (práticas) sexuais representados em diversas culturas materiais da Roma antiga presentes nas moedas. Porém, demandaria uma extensa pesquisa histórica e iconográfica, além de um aprofundamento percebido entre as divergências no meio acadêmico sobre a intenção simbólica impressa na spintriae e sua real função como material cultural (DUGGAN, 2017). Dessa forma, a discussão aqui estabelecida será limitada às moedas chamadas de spintriae, pequenos pedaços de metal (oricalco, uma liga de bronze com significativos traços de zinco, semelhante ao latão) com cunhagem de práticas sexuais, que circularam entre o fim do reinado de Augusto e patrocinadas pelo também imperador romano Tibério 14 a.C. – 37 d.C. (MARQUETTI; CARLAN; FUNARI, 2015).
Primeiramente o que é foi possível compreender é que as transformações imagéticas grafadas nas spintriae (figura 2) eram produzidas e distribuídas pelos oficiais romanos a partir da casa imperial, porque era necessária a obtenção e controle das fontes de metais.

Figura 2: Spintriae, século 1 d.C. Fonte: DUGGAN, 2017.

Figura 3: Spintriae, século 1 d.C. Fonte: DUGGAN, 2017.
As spintriae tinham duas faces “as tipologias cunhadas de casais heterossexuais em intercurso sexual em seu anverso, enquanto no reverso há numerais romanos, de I a XVI, rodeadas de um louro (DUGGAN, 2017, p. 104). A linguagem imagética na época (figura 3), facilitava a compressão das suas informações, uma vez que a maioria da população não era analfabetizada[1]. Os simbolismos sexuais expressos nas moedas retratavam uma prática naturalizada para a época, as cenas das orgias públicas realizadas por Tiberio, enquanto os numerais serviram de contagens monetárias dos serviços prestados (CARLAN; FUNARI, 2012).
Por outro lado, o que diz respeito as funções das moedas existem hipóteses de que elas eram utilizadas como: uma forma de pagamento dos soldados da época para prostituição ou atribuídas tésseras (bilhetes de acesso) usadas em lupanares (prostíbulos); podiam ser também fichas de participação em orgias (identificação, distinção, admissão em determinadas reuniões); ou usadas como objetos de jogos sexuais, como se fossem peças em um tabuleiro (CAVICCHIOLI, 2004). Na revisão literária de Duggan (2017) percebe-se uma tendência de relacionar a spintriae a práticas sexuais mediévico.
Segundo o autor a circulação das spintriae na prostituição se deve ao entendimento de que era utilizada como ficha em lupanares e que compreendeu que seus lados tinham relação de identificação da posição desejada pelo cliente e a precificação do serviço. Mesmo que uma mesma imagem nas moedas tenha números distintos, isso pode corresponder aos diferentes preços de um mesmo ato sexual (DUGGAN, 2017).
Duggan (2017) alerta que as spintriae serviam também como objeto de controle, na qual os donos dos estabelecimentos de sexo exerceriam um controle suas empregadas e os clientes, o que reduziria alguma casualidade de distorção de preços pelas prostitutas. É interessante pensar em uma na hipótese de fiscalização dos “cafetões”, pois assim era possível saber o que foi pago e do que será usufruído. O que parece que a escolha do cliente não era sobre a pessoa que iria fornecer o serviço e sim do ato/posição que seria escolhida e feita pelo cliente. Acredito que esse gancho se torna um estudo sedutor que mereceria uma profunda investigação epistemológica para tal hipótese.

Figura 4: Spintriae, século 1 d.C. Fonte: MARQUETTI; CARLAN; FUNARI, 2015.
Na spintriae acima (figura 4) Marquetti, Carlan e Funari (2015) pensaram na hipótese de que a cunhagem de prática sexual seria uma representação das conquistas imperiais, sendo a ilustração masculina com o falo ereto representando o império romano e a feminina o território que foi conquistado. Perceba que ao primeiro olhar, não é possível afirmar que seja a representação da figura feminina devido a ausência de elementos da forma física correspondente (seios aparentes, quadril demarcado).
O órgão sexual é simbolicamente relacionado aos valores primitivos e as representações práticas sexuais são permissíveis na Antiguidade Romana (ou não), dependendo do status social, elas podem fornecer vestígios sobre os gêneros e suas relações de poder. É possível compreender que para os romanos da época no sexo há a significação mística e social, fornecendo indícios sobre as identidades e uma mistura dos valores flexíveis no imaginário do povo ligados às práticas sexuais, riqueza e poder (MARQUETTI; CARLAN; FUNARI, 2015).

Figura 5: Spintriae, século 1 d.C. Fonte: DUGGAN, 2017.
Duggan (2017), ao descrever a spintriae que faz parte do acervo do Museu Britânico (figura 5) relata ser a representação da relação entre dois homens (presente no Império Romano, mas também identificamos a pederastia comumente na cultura grega). Na figura está a representação do erastes (amante mais velho e ativo) atrás usando uma coroa e o homem abaixo é um eromenos (amante jovem e passivo) tocando o braço e olhando nos olhos do outro.
Embora as modas sejam hipoteticamente destinadas aos ofícios de prostíbulos e transcenderem os aspectos fisiológicos dos corpos, as representações dos atos sexuais carregavam conquistas territoriais. A figura 4 pode refletir algo imposto, correspondente a uma batalha conflituosa e enquanto a figura 5 pode considerar uma conquista pacífica.
Ademais, tanto para Marquetti, Carlan e Funari (2015) e Duggan (2017) a cunhagem do ato sexual nas spintriae possuem significados políticos intrínsecos, e nos fornece indícios de relações de poderes de autoridade (mítico-religioso, político e sociocultural) expresso nos atos em plano macro e os poderes das relações de gênero na esfera micro. Em outras palavras, através dos padrões imagéticos sexuais nos registros da spintriae há indícios de demarcações de papeis sociais que pode ser entendida como comportamento desviante exercida na pólis. Nesta parte, a ideia foi fazer uma breve apresentação de como um material cultural romano de cunho sexual, foi considera e tratada por alguns estudiosos da antiguidade. As representações sexuais tiveram significativas importâncias histórica e política do império, não na apenas na reorganização da sociedade, de suprimentos de cereais e nos divertimentos públicos.
As spintriaes que foram pensadas para as relações de poder carregavam valores monetários e valores culturais capazes de estabelecerem significados para leituras adversas com imagens sexuais, elas apenas serviram para comprar e desejar. Os valores intrínsecos relacionados aos aspectos da condição humana é outra história. Na terceira postagem a tentativa será de fazer algumas reflexões sobre as representações imagéticas humanas em mídias que são consideradas obsoletas e obscenas provenientes do principado romano.
[1] “[Devemos] refletir sobre a significação da moeda no mundo antigo, num mundo onde não existiam meios de informação comparáveis aos nossos, onde o analfabetismo se estendia a numerosas camadas da população. A moeda é um objeto palpável, objeto que abre portas e proporciona bem-estar. Nela pode-se contemplar a efígie do soberano, enquanto os reversos mostram suas virtudes e a prosperidade da época: Felicitas Temporum, Restitutio Orbis, Victoria e Pax Augusta […] são slogans, propaganda” (ROLDÁN HERVÁS, 1975, p. 166).
REFERÊNCIAS
CARLAN, Claudio Umpierre; FUNARI, Pedro Paulo A. Moedas: A Numismática e o estudo da História. São Paulo: Ed. Annablume, 2012.
CAVICCHIOLI, Marina Regina. As Representações da Sexualidade na Iconografia Pompeiana. Dissertação de Mestrado no Instituto de Filosofia e ciências Humanas da Unicamp. Editora da Unicamp, Dezembro de 2004.
DUGGAN, Eddie. Stranger games: the life and times of the spintriae. Board Game Studies Journal, Suffolk: Ed. University of Suffolk, v.11, 2017, p. 101-121.
MARQUETTI, Flávia Regina. CARLAN, Cláudio Umpierre.; FUNARI, Pedro Paulo A. Muito além do prazer. As moedas romanas e as posições sexuais: relações de poder. Campinas, nº 29, jan-dez 2015.
ROLDÁN HERVÁS, José Manuel. Introducción a la Historia Antigua. Madrid: Ediciones Istmo, 1975.