Cara & Coroa – os dois lados das moedas de sexo mediévico

Dando continuidade a primeira publicação “Divertimento Garantido e Malvisto na Sociedade” agora com a intenção de refletir sobre um dos materiais culturais (moedas, afrescos e lamparinas) presente na sociedade da época (Roma antiga). Uma peça de metal, com duas faces, pode conter diferentes perspectivas de análise. Algumas moedas da Antiguidade detêm indícios econômicos, políticos, sociais e cunhagens míticos, estéticos, religiosos (MARQUETTI; CARLAN; FUNARI, 2015).

Os estudos das moedas trouxeram o próprio desenvolvimento da historiografia. Com a história social a moeda é vista como objeto de operações (troca e compra de mercadoria); e na história cultural elas são objeto de investigação das manifestações e suas relações de poder existentes nas representações imagéticas das moedas. A partir da pesquisa histórica realizada foi percebido que no material coletado a respeito da produção e sistematização monetária no período imperial, que segundo Cláudio Umpierre Carlan e Pedro Paulo Abreu Funari e (2012):

[…] baseou-se no grego, mas teve como característica única a difusão por uma extensa área, sem associar-se a cidades específicas, como foi o caso nas moedas gregas. Essa particularidade era o resultado, em primeiro lugar, de como o próprio mundo romano se constituiu, desde o início, por agregação de pessoas de diferentes origens. Por isso mesmo, o sistema monetário romano adquiriu feições modernas, em certo sentido, ao ter instituído moedas que eram usadas em uma área imensa, emitidas de maneira controlada pela autoridade monetária unificada.

(p. 51).

Sendo assim, um dos artefatos arqueológicos de circulação pública em todo território romano eram as moedas denominadas imperiais. Interessante ressaltar que o caráter heterogêneo desta cultura material leva estabelecer um diálogo iconográfico, para ser possível fazer uma leitura imagética e perceber valores sociais e políticos existentes nas moedas. Elas são capazes de difundir mensagens pela imagem e por sua fácil circulação pelo território, que segundo Carlan e Funari (2012) faz desta cultura material uma fonte democrática de informação e um objeto disseminador de ideias e de anunciação política eficaz. Em uma das faces observa-se o numeral romano e na outra a figura da autoridade política (o imperador) que é uma autoridade que a estabelece, determina, outorga o valor financeiro, fabricação das moedas e estipula a distribuição por determinado território, afinal “valores políticos estão intrínsecos em sua circulação” (MARQUETTI; CARLAN; FUNARI, 2015, p. 115). A presença da face evidencia o desejo de demonstrar e centralizar o poder, reforçado por meio da representação da coroa de louros na forma de uma homenagem póstuma frente as vitorias em batalhas apoteóticas na antiga Roma (CARLAN; FUNARI, 2012). Como por exemplo o caso da representação a seguir (figura 1).

Figura 1: Tessera, Augustus. Fonte: DUGGAN, 2017.

No recorte inicial da pesquisa foi idealizado organizar em tabelas o material coletado considerando posições sexuais e seus padrões imagéticos dos atos (práticas) sexuais representados em diversas culturas materiais da Roma antiga presentes nas moedas. Porém, demandaria uma extensa pesquisa histórica e iconográfica, além de um aprofundamento percebido entre as divergências no meio acadêmico sobre a intenção simbólica impressa na spintriae e sua real função como material cultural (DUGGAN, 2017). Dessa forma, a discussão aqui estabelecida será limitada às moedas chamadas de spintriae, pequenos pedaços de metal (oricalco, uma liga de bronze com significativos traços de zinco, semelhante ao latão) com cunhagem de práticas sexuais, que circularam entre o fim do reinado de Augusto e patrocinadas pelo também imperador romano Tibério 14 a.C. – 37 d.C. (MARQUETTI; CARLAN; FUNARI, 2015).

Primeiramente o que é foi possível compreender é que as transformações imagéticas grafadas nas spintriae (figura 2) eram produzidas e distribuídas pelos oficiais romanos a partir da casa imperial, porque era necessária a obtenção e controle das fontes de metais.

Figura 2: Spintriae, século 1 d.C. Fonte: DUGGAN, 2017.

Figura 3: Spintriae, século 1 d.C. Fonte: DUGGAN, 2017.

As spintriae tinham duas faces “as tipologias cunhadas de casais heterossexuais em intercurso sexual em seu anverso, enquanto no reverso há numerais romanos, de I a XVI, rodeadas de um louro (DUGGAN, 2017, p. 104). A linguagem imagética na época (figura 3), facilitava a compressão das suas informações, uma vez que a maioria da população não era analfabetizada[1]. Os simbolismos sexuais expressos nas moedas retratavam uma prática naturalizada para a época, as cenas das orgias públicas realizadas por Tiberio, enquanto os numerais serviram de contagens monetárias dos serviços prestados (CARLAN; FUNARI, 2012).

Por outro lado, o que diz respeito as funções das moedas existem hipóteses de que elas eram utilizadas como: uma forma de pagamento dos soldados da época para prostituição ou atribuídas tésseras (bilhetes de acesso) usadas em lupanares (prostíbulos); podiam ser também fichas de participação em orgias (identificação, distinção, admissão em determinadas reuniões); ou usadas como objetos de jogos sexuais, como se fossem peças em um tabuleiro (CAVICCHIOLI, 2004). Na revisão literária de Duggan (2017) percebe-se uma tendência de relacionar a spintriae a práticas sexuais mediévico.

Segundo o autor a circulação das spintriae na prostituição se deve ao entendimento de que era utilizada como ficha em lupanares e que compreendeu que seus lados tinham relação de identificação da posição desejada pelo cliente e a precificação do serviço. Mesmo que uma mesma imagem nas moedas tenha números distintos, isso pode corresponder aos diferentes preços de um mesmo ato sexual (DUGGAN, 2017).

Duggan (2017) alerta que as spintriae serviam também como objeto de controle, na qual os donos dos estabelecimentos de sexo exerceriam um controle suas empregadas e os clientes, o que reduziria alguma casualidade de distorção de preços pelas prostitutas. É interessante pensar em uma na hipótese de fiscalização dos “cafetões”, pois assim era possível saber o que foi pago e do que será usufruído. O que parece que a escolha do cliente não era sobre a pessoa que iria fornecer o serviço e sim do ato/posição que seria escolhida e feita pelo cliente. Acredito que esse gancho se torna um estudo sedutor que mereceria uma profunda investigação epistemológica para tal hipótese.

Figura 4: Spintriae, século 1 d.C. Fonte: MARQUETTI; CARLAN; FUNARI, 2015.

Na spintriae acima (figura 4) Marquetti, Carlan e Funari (2015) pensaram na hipótese de que a cunhagem de prática sexual seria uma representação das conquistas imperiais, sendo a ilustração masculina com o falo ereto representando o império romano e a feminina o território que foi conquistado. Perceba que ao primeiro olhar, não é possível afirmar que seja a representação da figura feminina devido a ausência de elementos da forma física correspondente (seios aparentes, quadril demarcado).

O órgão sexual é simbolicamente relacionado aos valores primitivos e as representações práticas sexuais são permissíveis na Antiguidade Romana (ou não), dependendo do status social, elas podem fornecer vestígios sobre os gêneros e suas relações de poder. É possível compreender que para os romanos da época no sexo há a significação mística e social, fornecendo indícios sobre as identidades e uma mistura dos valores flexíveis no imaginário do povo ligados às práticas sexuais, riqueza e poder (MARQUETTI; CARLAN; FUNARI, 2015).

Figura 5: Spintriae, século 1 d.C. Fonte: DUGGAN, 2017.

Duggan (2017), ao descrever a spintriae que faz parte do acervo do Museu Britânico (figura 5) relata ser a representação da relação entre dois homens (presente no Império Romano, mas também identificamos a pederastia comumente na cultura grega). Na figura está a representação do erastes (amante mais velho e ativo) atrás usando uma coroa e o homem abaixo é um eromenos (amante jovem e passivo) tocando o braço e olhando nos olhos do outro.

Embora as modas sejam hipoteticamente destinadas aos ofícios de prostíbulos e transcenderem os aspectos fisiológicos dos corpos, as representações dos atos sexuais carregavam conquistas territoriais. A figura 4 pode refletir algo imposto, correspondente a uma batalha conflituosa e enquanto a figura 5 pode considerar uma conquista pacífica.

Ademais, tanto para Marquetti, Carlan e Funari (2015) e Duggan (2017) a cunhagem do ato sexual nas spintriae possuem significados políticos intrínsecos, e nos fornece indícios de relações de poderes de autoridade (mítico-religioso, político e sociocultural) expresso nos atos em plano macro e os poderes das relações de gênero na esfera micro. Em outras palavras, através dos padrões imagéticos sexuais nos registros da spintriae há indícios de demarcações de papeis sociais que pode ser entendida como comportamento desviante exercida na pólis. Nesta parte, a ideia foi fazer uma breve apresentação de como um material cultural romano de cunho sexual, foi considera e tratada por alguns estudiosos da antiguidade. As representações sexuais tiveram significativas importâncias histórica e política do império, não na apenas na reorganização da sociedade, de suprimentos de cereais e nos divertimentos públicos.

As spintriaes que foram pensadas para as relações de poder carregavam valores monetários e valores culturais capazes de estabelecerem significados para leituras adversas com imagens sexuais, elas apenas serviram para comprar e desejar. Os valores intrínsecos relacionados aos aspectos da condição humana é outra história. Na terceira postagem a tentativa será de fazer algumas reflexões sobre as representações imagéticas humanas em mídias que são consideradas obsoletas e obscenas provenientes do principado romano.


[1] “[Devemos] refletir sobre a significação da moeda no mundo antigo, num mundo onde não existiam meios de informação comparáveis aos nossos, onde o analfabetismo se estendia a numerosas camadas da população. A moeda é um objeto palpável, objeto que abre portas e proporciona bem-estar. Nela pode-se contemplar a efígie do soberano, enquanto os reversos mostram suas virtudes e a prosperidade da época: Felicitas Temporum, Restitutio Orbis, Victoria e Pax Augusta […] são slogans, propaganda” (ROLDÁN HERVÁS, 1975, p. 166).


REFERÊNCIAS

CARLAN, Claudio Umpierre; FUNARI, Pedro Paulo A. Moedas: A Numismática e o estudo da História. São Paulo: Ed. Annablume, 2012.

CAVICCHIOLI, Marina Regina. As Representações da Sexualidade na Iconografia Pompeiana. Dissertação de Mestrado no Instituto de Filosofia e ciências Humanas da Unicamp. Editora da Unicamp, Dezembro de 2004.

DUGGAN, Eddie. Stranger games: the life and times of the spintriae. Board Game Studies Journal, Suffolk: Ed. University of Suffolk, v.11, 2017, p. 101-121.

MARQUETTI, Flávia Regina. CARLAN, Cláudio Umpierre.; FUNARI, Pedro Paulo A. Muito além do prazer. As moedas romanas e as posições sexuais: relações de poder. Campinas, nº 29, jan-dez 2015.

ROLDÁN HERVÁS, José Manuel. Introducción a la Historia Antigua. Madrid: Ediciones Istmo, 1975.

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O lazer e o acolhimento institucional: do legal ao real.

É indiscutível que o lazer figura entre os direitos fundamentais dos cidadãos brasileiros. Assegurado no artigo 6o da Carta Magna, a efetividade do direito ao lazer ainda esbarra em diversos fatores que o inibem. A sua garantia legal ainda não nos assegura, em diversos momentos, o seu usufruto pleno. Diversos fatores que nos atravessam enquanto indivíduos como as questões de gênero, raça e etnia e classe, além de outras intersecções, contribuem mais ou menos para o exercício pleno do direito ao lazer no Brasil.

Para além de compreendê-lo apenas na seara da legalidade, precisamos reconhecê-lo, como vemos em Gomes (2014), como uma necessidade humana que se concretiza na cotidianidade a partir da vivência lúdica das práticas sociais. Dessa maneira, podemos compreender que o lazer é inerente ao ser humano e se forja na cultura, assim como nas práticas que nos constituem como sujeitos e, dessa maneira, se torna fundamental para vivermos uma vida com dignidade. 

Se retomarmos então a sua constituição enquanto direito, percebemos que a sua garantia legal é condicionante da cidadania e, ao compreendê-lo como uma necessidade humana por sua vez, o temos como dimensão inerente aos sujeitos que permite o exercício digno de suas vidas. Tomando esses dois aspectos como pontos de partida para essa discussão, vamos ampliá-la no sentido de compreendermos que, por mais que haja argumentos suficientes para o tomarmos como fundamental ao exercício cidadão, em dados contextos, a sua garantia, por mais que esteja amparada pelos normativos, ainda é cerceada por uma política pública precária que, na pessoa de seus agentes, ainda não o reconhece como um direito social em pé de igualdade aos demais direitos.

Quando falamos de infâncias institucionalizadas e, mais detidamente, sobre acolhimento institucional de crianças cujos direitos foram violados e, portanto, acolhidas em instituição de abrigo, devemos ter em mente que estas crianças passam a ser tuteladas pelo Estado e dessa maneira, a  garantia dos seus direitos fundamentais são responsabilidade estatal na pessoa de seus agentes. O acolhimento institucional é medida extrema e tomada quando todas as outras possibilidades de manutenção das crianças no seio familiar são esgotadas. Importante ressaltarmos que, por premissa legal, as crianças quando acolhidas nessas instituições devem manter o seu vínculo comunitário usufruindo dos espaços e atividades da comunidade. Essa premissa, esbarra por vezes, na garantia de segurança dessas crianças que, em muitos momentos podem continuar a conviver com o seu violador, o que impossibilitaria a manutenção dessas crianças nas comunidade de onde são oriundas, sendo por sua vez, acolhidas em abrigos distantes de sua residência.

Tomando as garantias legais que asseguram a necessidade da manutenção e usufruto total dos direitos fundamentais desses infantes, O Estatuto da Criança e do Adolescente no seu artigo 3o prevê a “garantia de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana […] assegurando por lei ou por outros meios todas as oportunidades e facilidades, a fim de facultar-lhes o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social. [..]” e o artigo 227 da Carta Magna aponta que a família, o Estado e a sociedade devem assegurar, com absoluta prioridade os seus direitos fundamentais, entre eles o lazer. O Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária estabelece que “às crianças e adolescentes têm direitos subjetivos à liberdade, à dignidade, à integridade física, psíquica e moral […] à cultura, ao lazer e ao desporto […].” Entendidos então, como inalienáveis esses direitos, às instituições de acolhimento têm a responsabilidade de assegurar o efetivo usufruto do direito ao lazer e das diversas práticas que o compõem.

Em uma investigação realizada em 2017, tive a oportunidade de inferir se o direito ao lazer se fazia presente nas instituições de acolhimento da cidade de Belo Horizonte, a partir de um estudo de caso. O levantamento mostrou que a efetividade desse direito esbarra em diversas questões que vão desde a organização da rotina desses espaços, bem como a falta de capacitação referente à temática dos profissionais que atuam diretamente com as crianças. A hierarquização dos direitos também é um ponto importante de destaque, onde os direitos como educação, saúde e moradia se colocam como superiores aos outros direitos, abrindo brecha para desconsiderarmos o direito ao lazer em seu grau de importância. Não se pode negar que a garantia dos direitos acima mencionados são de extrema necessidade, mas o que se faz necessário é uma construção junto a esses agentes para que compreenda a importância do lazer na formação humana.

Nesse processo, é preciso compreender a responsabilidade do Poder Público em ofertar ações de fomento às práticas de lazer, bem como capacitar os seus agentes a oferecer as possibilidades de lazer dentro dos abrigos de crianças e adolescentes. Reconhecer que há um hiato entre o que é legal e o que é de fato realizado é um importante diagnóstico para que medidas sejam tomadas a fim de minimizar esses problemas. Retomando Gomes (2014), quando uma necessidade não é suprida, isso gera uma pobreza. E entendendo o lazer como fundamental para nosso desenvolvimento integral, medidas devem ser tomadas para garantir o usufruto pleno desse direito nesses ambientes sem hierarquizá-lo em relação aos demais direitos sociais fundamentais.

Assim, findo no entendimento de que esses espaços, por sua especificidade, são espaços onde a proteção integral é premissa e, dessa maneira, jogar luzes sobre as suas potencialidades e dificuldades se faz importante para que se possa discutir essas questões e estabelecer alternativas para a ampliação do acesso pleno ao lazer e as suas possibilidades.

Referências:

BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate a Fome. Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária. Brasília, DF, 2006. 181 p. Disponível em: http://www.dhnet.org.br/dados/pp/a_pdfdht/plano_nac_convivencia_familiar.pdf , acesso em 20 de abril de 2023

BRASIL. Lei no 8.069, de 13 de Julho de 1990. Estatuto da Criança e do Adolescente. Belo Horizonte: Imprensa Oficial de Minas Gerais, 2006. 87 p.

GOMES, Christianne Luce. Lazer: necessidade humana e dimensão da cultura. Revista Brasileira de Estudos do Lazer. Belo Horizonte. v.1, n.1, p. 3- 20. jan/abr. 2014

Estudos sobre representações de natureza e sua importância

No último texto que publiquei neste blog escrevi sobre lazer, crise climática e saúde planetária. Os gatilhos que impulsionaram essa escrita foram diversos, como a realização naquele momento da Conferência das Nações Unidas (COP27) e a ocorrência em diferentes locais do planeta, inclusive no Brasil, de fenômenos climáticos extremos.

A partir da problematização do lazer na natureza, e das possibilidades de se aprender com ela, refleti como pequenas ações nesse âmbito, por exemplo a preparação para o recolhimento do lixo produzido numa trilha, poderiam contribuir com a saúde planetária, promovendo transformações sociais.  

Todavia, ao buscar compreender noções atuais sobre a natureza, deparei-me com uma questão presente em trabalhos de diversos autores: do que falamos quando discorremos sobre natureza? Essa pergunta tem mobilizado pesquisas que buscam compreender representações de natureza em diferentes contextos, entre as quais destaco duas: Amanhãs do Brasil: o valor da natureza. O que a natureza significa para você? (2022) e Les français e la nature (2020).

Realizada pelo Museu do Amanhã, no Rio de Janeiro, em 2022, a pesquisa “Amanhãs do Brasil – o valor da natureza. O que a natureza significa para você” foi motivada por questões atuais, como a emergência planetária e a crise ambiental global, e buscou compreender como o público deste museu se sente em relação à natureza e sua importância para o país, hoje e amanhã. Pessoas de 21 estados das cinco regiões do Brasil e de outros 8 países, totalizando 925 participantes, responderam a um questionário com 50 perguntas, com questões abertas e fechadas.

O relatório com os resultados da pesquisa está disponível (https://museudoamanha.org.br/sites/default/files/amanhasBR-valor-natureza.pdf.). Nele há interessantes análises das respostas, que abrangem valores atribuídos à natureza, bem como informações sobre o perfil dos participantes, conforme categorias utilizadas em estudos sociodemográficos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), como gênero, raça ou cor, idade, renda e escolaridade, permitindo outras averiguações, com novos cruzamentos de dados (SCARANO, 2022).

Já a pesquisa Les Français e la nature, pelo Service des Données et Études Statistiques (SDES), do Ministère de la Transition Écologique et de la Cohésion des Territoires da França, e sob coordenação de Eric Pautard, explorou em profundidade o lugar que a natureza ocupa na imaginação coletiva e nas preocupações sociais dos franceses, levando em conta a experiência dos indivíduos, suas práticas, conhecimentos e opiniões.

A partir da realização de pesquisa empírica realizada no ano de 2020 buscou-se compreender, entre outras questões, a complexidade das representações sociais de natureza; identificar o envolvimento dos franceses em favor da natureza, motivações e obstáculos para atitudes individuais de cuidado; e saber como fazer para sensibilizar as pessoas sobre questões de sua proteção (PAUTARD, 2021)

Esta pesquisa gerou uma interessante publicação, intitulada “Société, nature et biodiversité: regards croisés sur le relations entre les français e la nature” (2021), na qual autores de diferentes áreas, participantes do estudo, refletem como os franceses veem as áreas naturais protegidas, como apreendem a urbanização de áreas naturais, quais as percepções sobre ameaças à biodiversidade etc. Nessa produção, diversos temas são abordados, como natureza e saúde, ações dos jovens e a natureza, representações territoriais de natureza, percepções da erosão da biodiversidade, engajamento dos cidadãos em favor da natureza, entre outros.

Vale destacar que o banco de dados dessa pesquisa está disponível e pode ser consultado (http://dataviz.statistiques.developpement-durable.gouv.fr/EnqueteNature/). A partir dele é possível ter acesso ao questionário de 42 perguntas abertas e fechadas, aplicado em uma amostra de 4553 pessoas, inclusive moradores de áreas protegidas; às respostas tabuladas, entre outras informações. É também possível realizar diferentes cruzamentos dos dados disponibilizados por categorias, como sentimento de degradação, motivações e obstáculos, gerando gráficos a partir de variáveis, como gênero, idade e nível de estudo e nível de vida, o que possibilita novas análises, aproximações com outros contextos etc.

As duas pesquisas trabalham com dimensões subjetivas, em que sentimentos, afetos, conhecimentos, crenças etc. são considerados; identificam uma diversidade de representações de natureza associada a contextos culturais; mapeiam percepções de degradação e atitudes individuais de proteção. Nos resultados sentimentos positivos de estar na natureza são evidenciados, como também o desejo de estar mais em contato com ela. Os temas natureza, saúde e qualidade de vida são abordados, bem como a frequência de imersão na natureza.

Entre as oito representações de natureza identificadas por Ducarme e Pautard (2021), a partir dos dados da pesquisa na França, a representação que trata sobre o lazer ao ar livre e a natureza a serviço do homem merece destaque, porque possibilita compreender melhor valores atribuídos à natureza nessas experiências naquele contexto, pensar sobre as relações homem e natureza no lazer, estabelecer diálogos com outras realidades. Ademais, também nos instiga a realizar pesquisas sobre essas experiências em outros contextos.

Referências

DUCARME, Frédéric; PAUTARD, Eric. Une nature en quête de sens: état des lieux des représentations sociales de la nature dans la France contemporaine. La Revue du CGDD, 2021, Société, nature et biodiversité: regards croisés sur les relations entre les Français et la nature. Disponível em: https://hal.science/hal-03507654/document.

PAUTARD, Éric. Société, nature et biodiversité: regards croisés sur les relations entre les Français et la nature. 2021. Disponível em: https://www.statistiques.developpement-durable.gouv.fr/sites/default/files/2021-12/thema_analyse_10_societe_nature_biodiversite_decembre2021.pdf.

SCARANO, Fabio. Pesquisa: amanhãs do Brasil: o valor da natureza [livro eletrônico]: o que a natureza significa para você? Rio de Janeiro: Museu do Amanhã/ Instituto de Desenvolvimento e Gestão – IDG, 2022.

Em Parintins “é Boi-bumbá o ano inteiro”

A região Amazônica é exuberante e isso chama cada vez mais a atenção de pessoas que buscam em seu tempo livre desfrutar o Lazer em meio a natureza da qual se distancia nos grandes centros urbanizados. O turismo tem transformado o lazer em mercadoria na forma de viagens e outros serviços que exigem uma prestação de serviço especializado, em razão disso, as cidades amazônicas, por meio de instituições e políticas públicas, têm investido em capacitação de pessoas para atender as exigências dos turistas, na implementação de serviços básicos como energia elétrica, água encanada, entre outros, alterando o modo de vida dos habitantes locais.

Na região Amazônica, o que move os 62 municípios é a economia através dos atrativos de lazer. As tradicionais festas de cunho religioso ou de comemoração pela produção local (hortifrutigranjeiros, pescados ou pecuários) se destacam. Segundo Matos (2015, p. 108) “nessa relação de interdependência, muitos gastam suas economias em busca de emoções prazerosas e outros, de alguma forma ganham esse dinheiro”. E assim o amazônida tira seu sustento o ano todo. O autor destaca ainda que o lazer promove a diferenciação social, pois em algumas práticas, precisa-se ter um trabalho profissional, assim, as populações locais são levadas a se capacitar, mudando seu estilo de vida na maioria das vezes. Podemos citar como exemplo, uma pessoa que usa somente a colher para se alimentar em sua casa, ela passa a trabalhar em um restaurante e precisa aprender a montar uma mesa para os hóspedes de uma pousada, ela se especializa e acaba levando essa montagem para seu dia a dia em sua casa passando a utilizar talheres em sua rotina e de sua família.

A cidade de Parintins, localizada há 369 km da capital do estado do Amazonas, é conhecida mundialmente pelo maior espetáculo a céu aberto do mundo. O Festival Folclórico de Parintins é realizado desde o ano de 1966 com a disputa entre os Bois-Bumbás Caprichoso e Garantido. O festival, como é chamado, reune milhares de pessoas todos os anos que se deslocam até o município através de barcos, navios, lanchas rápidas ou avião para vivenciar três dias de muitas emoções difenciadas.

Vista da cidade de Parintins. Foto: Everton Macedo.

Até meados dos anos 90, a cidade voltava a sua “normalidade” após a Festa de Nossa Senhora do Carmo, padroeira do município, no mês de julho. Atualmente, a cidade usufrui dos resultados da festa o ano inteiro em diferentes setores fazendo com que seus 115 mil habitantes se preparam para receber os visitantes da melhor maneira possível o ano todo.

No início do ano tem os ensaios para o carnaval, seguido do carnailha que além do carnaval tradicional, tem também boi-bumbá em trios elétricos; mês de março inicia temporada de ensaios na cidade e na capital do estado, o que dá visibilidade para o setor de hospedagem que já começa se programar para o aluguel de quartos, casa, suítes para os dias de festa, além da produção e venda de adereços para enfeitar o corpo; em junho tem a festa propriamente dita com uma semana movimentada, depois tem a festa da padroeira; e em seguida inicia a temporada de transatlânticos que começa no mês de outubro que aquecem exclusivamente o comércio de artesanato e de transporte através de tricilos já que eles vão a Parintins com as operadoras de turismo com tudo incluso mas vêem um atrativo na forma exótica de mobilidade urbana. Há de se destacar ainda o esforço que pessoas de baixa ou nenhuma escolaridade no município fazem para conseguir vender seus serviços ou produtos para o turista estrangeiro, denotando assim a transformação que o turismo pode trazer para a cidade e seus habitantes. A cidade não para. Ao contrário do que muitos cidadãos parintinenses pensam, Parintins respira sim boi-bumbá o ano inteiro. Tudo na cidade podemos dizer que existe em decorrência da realização do festival na cidade.

Quando a rotina de uma cidade é fortemente alterada para o lazer, acaba por estimular e exigir mudanças de comportamento de seus modadores locais em atitudes em prol do ambiente e da sociedade, assim, também “é possível que se fortaleça, estimulados pelo lazer, uma sensibilidade com relação às questões do ambiente, preservando formas de vida e ambientes exóticos” (MATOS, 2015, p. 119). Dessa maneira, o lazer contribui para a manutenção de práticas culturais que atraem o olhar dos turistas e também é responsável por mudanças socioculturais na sociedade parintinense. Percebe-se, através da teoria de Norbert Elias utilizada como lente, as ações do Processo Civilizador (ELIAS, 1994; 2006; 2018; ELIAS; DUNNING, 2019) no Lazer para que a brincadeira de boi se adequasse às regras sociais e também do Estado transformando-se em um espetáculo aberto a todos os públicos.

Não só a rivalidade entre os Bois-Bumbás e seus torcedores trazem as marcas do processo civilizador, caminhando para a diplomacia, mas também a população local do município. Um dos marcos do Festival Folclórico de Parintins foi em 1995, quando o Estado do Amazonas assumiu o controle da realização do espetáculo do festival, bem como a festa passou a ser televisionada para todo o Brasil através do Amazon Sat, afiliada da Rede Globo, e do patrocínio da Coca-Cola. O município ganhou mais visibilidade até mesmo no cenário internacional. Contudo, a oferta desta festa não poderia ser mais nos moldes tradicionais e todo o cenário precisou se adaptar.

O turismo foi um dos setores que mais transformaram a cidade e seus habitantes. A cidade recebeu sinalização para atender aos turistas que visitam o município e consequentemente a população também, obras foram realizadas para melhoria dos pontos turísticos, cursos foram implantados visando o atendimento ao público como inglês e normas de conduta, casas foram reformadas etc, cursos técnicos, implantação de universidades públicas e particulares etc. Os habitantes passaram a ter mais contato com quem vem de fora e isso acabou alterando seus hábitos, “é quando podemos observar o efeito dos ditames da moda em jovens que penetram nas comunidades amazônicas” (MATOS, 2015, p. 108), além da presença da internet, mesmo que ainda precária.

No município, entre outros serviços voltados ao turismo, por exemplo, carecia de espaços para receber os visitantes, geralmente, eles ficavam hospedados nos barcos em que eles vinham para a cidade, em barracas ou em casas de parentes ou conhecidos. A rede hoteleira resumia-se em três hotéis e pensões na orla da cidade. Segundo Fernandes (2002),

O crescimento do Festival alterou o perfil dos hóspedes, o que forçou os donos de hotéis a realizarem melhorias na estrutura física de seus estabelecimentos, com reformas, ampliações, aquisição de equipamentos para o lazer ou mero reforço da clientela. Novos hotéis surgiram na tentativa de fazer frente à demanda (p. 102).

Surgiram nesse interim, muitas pousadas e um hotel padrão resort (3 estrelas) na cidade para atender aos turistas mais exigentes. Em 1997, o Governo do Estado implantou um programa visando fomentar o desenvolvimento turístico no estado. O programa Cama e Café da Manhã foi reformulado e tem atualmente 165 casas cadastradas e ele consiste na preparação das casas através da construção de suítes para albergar os hóspedes por um preço abaixo do mercado de hospedagem convencional e com serviços adaptados conforme a necessidade do cliente que busca, antes de tudo, conforto e segurança. De uma residência familiar, nos dias que antecedem e ocorrem o Festival Folclórico de Parintins, esta se transforma em uma nova figuração, ou seja,

[…] apenas os seres humanos formam figurações uns com os outros. O modelo de sua vida conjunta em grupos grandes e pequenos é, de certa maneira, singular e sempre co-determinado pela transmissão de conhecimento de uma geração a outra, portanto por meio do ingresso do singular no mundo simbólico específico de uma figuração já existente de seres humanos (ELIAS, 2006, p. 25).

Tendo novos indivíduos no grupo, a família assume um comportamento diferente de quando não existem hóspedes, boas maneiras são adotadas para a boa convivência e hospitalidade, cômodos das casas são reformados para receber o outro, se comunicam em um idioma diferente do habitual para interagir com o novo membro se for necessário. Fora do período de festa, os quartos ou suítes são alugadas para outros hóspedes como estudantes de universidades ou profissionais que vão à cidade trabalhar por temporada.

Esses são somente alguns exemplos de como uma figuração pode se adaptar em função do outro, isto é, transformando principalmente sua casa em pousada para aqueles que vem em busca de vivenciar o cotidiano do amazônida e suas festas, alterando de forma significativa sua figuração atual em nome do Lazer, sendo notória a transformação que o turismo pode trazer para a cidade e seus habitantes.

Referências

ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador I: Uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1994, v; I.

_____. Introdução a Sociologia. Lisboa: Edições 70, 2018.

_____. Escritos & Ensaios: Estado, processo, opinião pública. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006.

ELIAS, Norbert.; DUNNING, Eric. A Busca da Excitação: desporto e lazer no processo civilizacional. Lisboa: Edições 70, 2019.

FERNANDES, Rúbia Figueiredo. Festival Folclórico: o que muda em Parintins? Revista Somanlu, v. 2 n. 2 (2002): Edição Especial, 2002. DOI: https://doi.org/10.29327/233099.2.1-8.

MATOS, Gláucio Campos Gomes de. Ethos e Figurações na Hinterlândia Amazônica. Manaus: Valer/Fapeam, 2015.

“Pequeno Tratado” sobre infâncias em manoelês

Que tem a dizer uma criança? E que desafios se descortinam a um pesquisador das infâncias, que assume a árdua tarefa de ver e ouvir crianças em suas diversidades e participações, deixando-se atravessar por elas e apresentando-as sem incorrer em tutela?

O escritor e poeta Manoel Wenceslau Leite de Barros (1916 – 2014) fez corpo e poesia às infâncias desde a beira do Rio Cuiabá, no estado de Mato Grosso, para o mundo. Com um estilo de escrita dotado de neologismos, versou de forma muito livre sobre as infâncias e a natureza assentadas em universos reais, oníricos e surreais, mantendo muito viva a criança que o habitou por toda a vida. A essa forma de expressão de atravessamentos tratarei doravante de “manoelês”, linguagem inventada e já explorada em estudos anteriores a este que se lê, que desterritorializa o conceito de infância (SAMPAIO & KRAEMER, 2022). O pantanal mato-grossense, berço geográfico do autor, jamais deixou de ser seu grande quintal inspirador, de onde todo recurso material provê ilimitadas corporalidades e temporalidades. Eis aqui com que me delicio com o que há de mais bonito da literatura de Manoel: os devires-infâncias expressos em manoelês.

Este é um exercício sobre vigorosas e diversas infâncias e formas de aprendizagem e participação infantil que potencialmente emergem de um espaço não-escolar. Mestrando em Estudos do Lazer, tomei como o “grande quintal” em que faço minhas empirias o Parque Municipal Fazenda Lagoa do Nado, expoente equipamento de lazer na cidade Belo Horizonte, em Minas Gerais, que reúne ambiente físico e patrimônio histórico e natural, mas não só ele. Os brincares e as contemplações são tomados como recortes observáveis para uma descrição minimamente densa de experiência de lazer imanentemente humana, característicos das crianças em suas relações e cotidianos. A etnografia é o recurso de que lanço mão para defender minha teoria e também para me manter vivo – autor – próximo e em relação com as crianças.

“CÊ TAMÉM É DO EIXO 3!”

Em Novembro de 2022 participei com alegria e muita urgência de uma grande Conferência Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, realizada no município de Belo Horizonte em iniciativa conjunta entre poder público e sociedade civil. Dividida em cinco eixos temáticos, a Conferência teve como objetivo promover debates acerca da “Situação dos direitos humanos de crianças e adolescentes em tempos de pandemia pela Covid-19: violações e vulnerabilidades de crianças e adolescentes, ações necessárias para reparação e garantia de políticas de proteção integral, com respeito à diversidade.” Escolhi participar do eixo 3, cujo enunciado “Ampliação e consolidação da participação de crianças e adolescentes nos espaços de discussão e deliberação de políticas públicas de promoção, proteção e defesa dos seus direitos, durante e após a pandemia” é pra mim um tema caro e instigante que me move à realização de minha pesquisa de mestrado.

Na pré-conferência ocorrida na regional geográfica que abrange meu domicílio, enquanto aguardava pelo início dos parlatórios e orientações assentado em uma arquibancada, eu fazia uma leitura atenta dos materiais textuais que foram distribuídos a todos os participantes. À minha frente, comendo pipoca e utilizando crachá de participante me abordou o menino “Grilo” (nome fictício para proteção da criança), de 8 anos, incisivo: Cê tamém é do eixo 3!

Naquela quadra temporal, confesso que tomei um susto. A clausura imposta pela gravíssima pandemia de COVID e pelo desastroso governo de Jair Messias Bolsonaro muito me fragilizara e assustara, e apesar de já estar matriculado e frequente de forma presencial na UFMG e no Parque Lagoa do Nado, eu não havia conversado com crianças fora do meu seio familiar, e muito menos havia sido interpelado daquela forma por uma infância. Grilo me contou que havia sido chamado à participação na Conferência com seus colegas de classe por uma de suas professoras na escola pública em que estuda. Minha gagueira característica de quando sou abordado por desconhecidos com perguntas tão assertivas e semblantes leves como o de Grilo com sua pipoca foi imediatamente abrandada pela respeitosa e gigante paciência e escuta daquele acolhedor cidadão, habitado por uma criança com seu corpo franzino e muito saudável. Perguntei a ele sobre se sabia de que se tratava “nosso eixo”, ao que Grilo foi enfático: De política!

Compartilhei com ele o material que havia sido distribuído aos participantes, inclusive a ele próprio, que não se lembrava mais onde havia deixado sua pasta. Muito me incomodou que aqueles documentos estavam rebuscados de jurisdiquês e nada de manoelês. Grilo leu o enunciado do eixo 3, e reiterou: Viu? É política. Eu apenas complementei que ali era um momento muito importante em que ele poderia falar livremente de demandas suas e de seus pares, e que deveria ser atentamente ouvido.

Já na reunião do grupo de trabalho do eixo, em sala reservada e ocupada por adultos, adolescentes e crianças participantes, Grilo levantou a mão para exigir: Eu quero um parquinho na minha escola! De novo me incomodou que os dois coordenadores daquele eixo não deram muita atenção àquele potente pedido. Um parquinho é imbuído de tamanha infinitude de significados e relevância aos propósitos da Conferência, mas não foi tomado como nota do documento que produzimos. Que tem a dizer uma criança?


INFÂNCIAS E O MANOELÊS

Canteiro de obra: as crianças… sentem-se irresistivelmente atraídas
pelos destroços que surgem da construção, do trabalho no jardim ou
em casa, da atividade do alfaiate ou do marceneiro. Nestes restos
que sobram elas reconhecem o rosto que o mundo das coisas volta
exatamente para elas, e só para elas. Nestes restos elas estão
menos empenhadas em imitar as obras dos adultos do que em
estabelecer entre os mais diferentes materiais, por meio daquilo que
criam em suas brincadeiras, uma nova e incoerente relação. Com
isso, as crianças formam seu próprio mundo das coisas, mundo
pequeno inserido em um maior. (Walter Benjamin, 1995, p. 77-8)

Percebo em meus exercícios etnográficos a necessidade de priorizar um planejamento participativo e baseado no lugar destes espaços, para que estes possam de fato ir ao encontro das necessidades e interesses das comunidades (TOMÁS, 2022, p.83). As crianças têm direito a ser incluídas neste processo e a serem ouvidas, revelando ter um conhecimento experiencial e uma consciência crítica do espaço.

Crianças falam com entusiasmo desde suas margens, esperançosas por estarem sendo de fato escutadas. Ao falarem de si e de suas realidades, apresentam quadros surpreendentes de suas relações com as pessoas e com os espaços com quem e por onde transitam (SOUSA, 2014, p. 83). Não escapam, entretanto, e em pleno século dito pós-Moderno, da bestialização imposta pelo ser-adulto. A que desafio deveria se propor alguém que se pressuponha pesquisador e militante com as infâncias ao compor espaços de deliberação com propostas mirabolantes e supostamente acolhedoras? Grada Kilomba nos dá uma pista.

A margem se configura como um espaço de abertura e criatividade, onde novos
discursos críticos se dão. Nesse espaço crítico, podemos imaginar (…) perguntas que
desafiam a autoridade colonial do centro e os discursos hegemônicos dentro dele.
Assim, a margem é um local que nutre nossa capacidade de resistir à opressão, de
transformar e de imaginar mundos alternativos e novos discursos (KILOMBA, 2019,
p. 68
)


Devires marginais trazem consigo infinitas possibilidades de ser sujeito. A criança é agente de um haver muito próprio e, a troçar modos pré-determinados de ser e fazer, farta-se muito mais de suas aprendizagens nos interstícios de suas relações com o mundo e com outras pessoas. Enquanto pessoa-sujeito de direitos, produto e produtora de cultura e aprendizagem – logo, autora(!)(?) -, exprime uma força da natureza que subverte a malha da cultura de maneira muito própria, independente de concessões ou transmissões, e a partir de suas relações sociais com adultos e outras crianças

(…) o nome do autor funciona para caracterizar um certo modo de ser do discurso:
para um discurso, o fato de haver um nome de autor, o fato de que se possa dizer
“isso foi escrito por tal pessoa”, ou “tal pessoa é o autor disso”, indica que esse
discurso não é uma palavra cotidiana, indiferente, uma palavra que afasta, que flutua
e passa, uma palavra imediatamente consumível, mas que se trata de uma palavra
que deve ser recebida de uma certa maneira e que deve, em uma dada cultura,
receber um certo status. (FOUCAULT, 2013, p.p.273-274)


A infância não é uma ideia abstrata, tampouco natural, menos ainda neutra. Sua visibilidade está condicionada e condiciona as relações que os diferentes sujeitos inscrevem e conformam. Esse entendimento reforça uma concepção de que o estatuto e os papéis sociais que são atribuídos à infância mudam com as formas sociais das quais as crianças são sujeito e objeto de variação e de mudança em função de dimensões sociais, como classe, contextos culturais e relações de gênero, entre outras. Como emerge tal sujeito-criança?

Corpo é, do ponto de vista materialista, a concretude (ou a razão) de um construto historicamente situado. Fisiologicamente, corpo é a complexa estrutura que pulsa vida a partir de um sincronismo dos microcosmos que o compõe, inclusive a simbiose. Metafisicamente (ou cosmologicamente), corpo é aquilo que se apresenta ao pensamento, seja uma ideia ou uma percepção sensorial (que não necessariamente corresponde ao real, a exemplo das imagens projetadas por sombra produzida por objetos com forma bastante diferente da sombra projetada). Tentamos nos aproximar de uma postura romântica de ciência que consiste em não reduzir a existência para transformá-la em ciência, não fragmentá-la para convertê-la em pesquisa (LOPES, 2022, p. 12).

Corpo “está sendo”, conforme a hermenêutica Heideggeriana, porquanto dure a racionalidade direcionada a ele (entre um prestar atenção e um dispersar-se ou desinteressar-se). Quero dizer, a referência necessária ao humano para que se situe naquilo que habita (o mundo, a loucura, a cidade…), é o corpo que está: o corpo humano no momento junto com os corpos não-humanos e humanos. Deste modo, é interessante que se pense no fazer corpo como instância para compreensão e produção de cultura (LOPES, 2022, p.9; SOUSA, 2014, p. 77). Ganham corpo as coisas, e os além-corpos à medida em que se relacionam ou se refugiam na loucura ou no hedonismo (SOUSA, 2014, p. 80). “O corpo” é um singular abrangente, que abarca perspectivas possíveis (por isto inferi que o corpo “está”, e não “é”) de corpos constituídos e constituintes. O corpo como cerne da cultura e da sociedade, é central na invenção de cotidianos, e eu defendo que o corpo seja pressuposto para uma gambiarra (no sentido da inventividade, da astúcia também de resistência). O primeiro território de onde emerge qualquer improviso, qualquer gambiarra, é o sujeito e seu corpo, ou o corpo e sua subjetividade. Isto torna-se um problema em contraste com as estruturas institucionais engessadas em padrões que excluem o sujeito das partilhas, embora façam uso dele como massa de manobra.


(…) no momento em que se aborda esse problema da vida dos indivíduos, da vida
de seu corpo e de seus desejos, necessita-se de mais alguém. Um deus,
eventualmente, mas o deus não está presente; pois bem, vocês vão precisar de um
homem. E o que esse homem terá de fazer? Pois bem, é ele que, eventualmente
sozinho, sem ajuda de quem quer que seja, falando sozinho em nome da razão, vai
se dirigir aos indivíduos e com toda a franqueza lhes dizer a verdade, uma verdade
que deve persuadi-los, e persuadi-los a se conduzir como devem. (FOUCALT,
2010, p.188)


Paradoxo dos paradoxos, as atuais sociedades capitalistas globalizadas fazem prova de um uso extremo do tempo sobre os corpos, quer exaurindo-os até à neurose e à histeria, quer desvalorizando-os infinitamente, tornando-os inúteis (sem emprego) e com eles o próprio sujeito, que passa a ser um peso, uma dificuldade social, cuja origem é atribuída, em primeiro lugar, a um culpabilizante fracasso pessoal e individual. Assume-se que os signos temporais, como todos os signos, constituem-se como significantes e significados, tendo em mente que, de acordo com a teoria semiótica, referente (ou objeto) de um discurso e parte de uuma relação de signos; ele é constituído, por assim dizer, dentro do discurso (FABIAN, 2013, p. 105).

A história de vida e a autobiografia (aliás, para os fins desta discussão, todos os tipos de escrita) são em essência auto-constitutivas; elas são momentos, fixados no tempo pelo mundo, no processo dialético de constituição de si. Enquanto tal, ambas demandam a mediação do Outro. O “Outro”, aqui, não diz respeito meramente a um indivíduo concreto que está diante de alguém, mas àquilo que ele representa simbolicamente. No nível mais abstrato, ele é o locus transcendental do sentido; ele é, também, tipificado por papéis sociais, por percepções reguladas por convenções, por estilos culturalmente determinados, e por um amplo leque de associações idiossincráticas que podem não ser plenamente conscientes. (CRAPANZANO, 1977, p. 4).

Ao fazerem corpos presentes em uma Conferência de Estado cujo propósito visceral foi a redação de um texto coletivo com força de lei, escrito “a mais de mil mãos” a partir de diferentes histórias de vida e realidades sociais e culturais, as crianças assumiram os próprios relatos de vida como representativos de um ato de ascensão social e de integração à cultura dominante (adulta, branca, machista, racista, homofóbica, transfóbica e elitista). O exemplo que trago aqui é o perfeito exemplo de um âmbito de luta militante destinada a suscitar consciências de classe. (LEJEUNE, 2008,p.133)

O LAZER COMO CAMPO E EM CAMPO

Diálogos e silêncios permeiam nossa relação com as imagens. O que
elas dizem em suas iconografias nos é relativamente inteligível. É por
trás da aparência, porém, no ato de sua concepção e ao longo de sua
trajetória,naquilo que ela tem de oculto, em seus silêncios, que
residem as histórias secretas dos objetos e dos seres, das paisagens
e dos caminhos. (Boris Kossoy, O relógio de Hiroshima: reflexões
sobre os diálogos e silêncios das imagens. 2005. p. 41)


Me esforço com afincada delicadeza de braços abertos que o lazer permeia consensos entre os estudiosos de diversas áreas que defendem que as potências humanas surgem, primordialmente, do sujeito que experimenta seu corpo inserido em contextos – “cotidianos”, nas palavras de Michel de Certeau (1995) – sociais e culturais, antes de qualquer materialização ou transformação de sentido utilitarista do que se faz.

Nesta toada, defendo também que antes de qualquer interação com o mundo, o sujeito experimenta suas práticas primeiramente a partir de seu corpo, em estado de lazer, fenômeno que tem como traço definidor, o caráter “desinteressado” dessa vivência. Ou seja, não se busca, pelo menos fundamentalmente, outra recompensa além da satisfação provocada pela situação. A disponibilidade de tempo significa possibilidade de opção pela atividade ou pelo ócio. Desse modo, é necessário considerar que as tramas culturais que perpassam o lazer são cada vez mais importantes à compreensão da realidade sociocultural, bem como à superação de limites colocados por ela.

Grilo não estava na Conferência a contento, menos ainda por obrigação. A presença dele e de outras crianças ali, num importante grêmio social reunido em um espaço público, colorido e com pipoca foi um potente gesto arquetípico com capacidade de fazer a palavra infância emergir em revoada “entre aves”, em bom manoelês (BARROS, 2013, p. 465). O desabrochar de meu interesse em contribuir com os campos acadêmicos e científicos sobre infâncias e lazer ocorre no ano de 2018, a partir de uma experiência de aprendizagem que observei acontecer a partir de um passeio com crianças no Parque Lagoa do Nado. Foi também um menino, em seus 11 anos de idade e vítima de violências das mais atrozes, que me presenteou com uma expressão de aprendizagem a partir de uma brincadeira no parque em que houve relações entre pessoas e do menino com um não-humano. Descrevo essa experiência no texto de apresentação de minha dissertação de mestrado, em curso.

Para além daqui, e até aqui, já consigo enxergar que incorri justamente no que pretendo não fazer, que é moldar a poesia da infância num normatizador academicismo, que tenderá a me manter na clausura e a ,”afastar os passarinhos”. A carga de leituras, entre Manoel de Barros e periódicos científicos, assopram na minha cabeça como um vórtice de vento que “arrevoa” folhas secas num parque. Exercito uma postura de desacelerar a mim mesmo para conseguir enxergar um Saci que chama as crianças a brincarem com ele de pega-pega, ao invés que um pontual evento da natureza que cria vento e move coisas. A partilha disso tudo com meu orientador e meus leitores também é algo que almejo seja leve e leitura prazerosa acima de técnica, em breve.

REFERÊNCIAS

BARROS, Manoel de. Poesia completa. São Paulo: LeYa, 2013.

BENJAMIM, W. Obras Escolhidas II. 5. ed. São Paulo: Brasiliense, 1995.

CERTEAU, M. de. A invenção do cotidiano. (1.Artes de fazer). Petrópoles: Vozes, 1995

CRAPANZANO, Vincent. The life history in anthropological fieldwork. Anthropology and Humanism
Quaterly
, n. 02-03, 1977, p. 03-07. [Tradução para uso didático por Leandro de Oliveira].

FABIAN, Johannes. “O Tempo e a escrita sobre o Outro” In O Tempo e o Outro: como a antropologia estabelece seu objeto. Petrópolis: Vozes, 2013.

FOUCAULT, Michel. O que é um autor? In: FOUCAULT, Michel. Ditos e escritos, vol. III. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013, p. 268-302

KILOMBA, Grada. “Quem pode falar? Falando do centro, descolonizando o conhecimento” In Memórias da Plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.

KRAMER, Sonia. INFÂNCIA, CULTURA CONTEMPORÂNEA E EDUCAÇÃO CONTRA A BARBÁRIE. Revista Teias, [S.l.], v. 1, n. 2, p. 14 pgs., ago. 2007. ISSN 1982-0305. Disponível em: https://www.epublicacoes.uerj.br/index.php/revistateias/article/view/23857>. Acesso em: 10 nov. 2022.

LEJEUNE, Philippe. “A autobiografia dos que não escrevem” In O pacto autobiográfico: de Rousseau à internet. Belo Horizonte: UFMG, 2008.

MORAES, Fabiano de Oliveira e SILVA, Sandra Kretli da. Deslimites da Palavra em Manoel de Barros: literatura menor e infância. Educação & Realidade [online]. 2019, v. 44, n. 4 [Acessado 10 Novembro 2022]. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/2175-623686566&gt;. Epub 11 Nov 2019. ISSN 2175-6236. https://doi.org/10.1590/2175-623686566.


SAMPAIO, Helena Almeida e Silva e KRAEMER, Celso. “Manoelês” e a desfunção da infância lírica: experiência estética da costura de outras infâncias possíveis. In. Zero-a-Seis. Dossiê Arte da Pergunta: a criança como propositora de sentidos estéticos [online]. 2022, v.24, n. 46, pp. 986-1007 [Acessado 10 de Novembro 2022]. Disponível em: < https://doi.org/10.5007/1980-4512.2022.e83880&gt;. PDF 27 Out 2022. ISSN 1980-4512. https://doi.org/10.5007/1980-4512.2022.e83880 .

TOMÁS, Catarina. Produção social da infância nos parques urbanos de Lisboa. In: GOBBI, A; ANJOS, C. I; SEIXAS, E. C; Tomás, C. O direito à cidade pelas crianças; perspectivas desde o Brasil e Portugal. São Paulo:FEUSP 2022. https://www.livrosabertos.sibi.usp.br/portaldelivrosUSP/catalog/view/804/715/2641



O torcedor e o ato de torcer em duas canções da música popular

O início da parceria entre futebol e música no Brasil remonta aos primórdios da modalidade, quando ainda possuía sotaque britânico. Mas foi a partir da década de 1930, quando o futebol entrou em franco processo de popularização, que o refinamento poético e a diversidade de ritmos nessa relação se fizeram presentes. Se, no início, os choros, como “1 x 0” (1929), de Pixinguinha e Benedito Lacerda, marcaram época, foi o “casamento” com o samba que a parceria ganhou novos impulsos criativos, de muito improviso e variação temática.

Neste breve texto, trazemos dois exemplos dessa relação, especificamente duas canções que tem por tema o torcedor e o ato de torcer: “Time perna de pau” (1956), de Vicente Amar, na interpretação do conjunto Demônios da Garoa (1969), e “Eu quero ver gol” (1996), do grupo O Rappa. Embora quase quatro décadas separem essas duas canções, elas nos permitem vislumbrar olhares para o torcedor e o ato de torcer para um clube de futebol enquanto lazer.

Em termos de análise das canções, não obstante o fato de privilegiarmos neste breve estudo a letra em detrimento da melodia, não devemos perder de vista de que se trata de um discurso lítero-musical, como propõe o linguista Nelson Barros da Costa (2001).

O futebol e o ato de torcer para um time que deixa a desejar…

A canção “Time perna de pau” (1956), de Vicente Amar, tornou-se sucesso nas vozes do grupo paulistano Demônios da Garoa, em 1969. Mineiro radicado no Rio de Janeiro, funcionário do departamento musical da Rádio Nacional, Vicente Amar (1929-2012) teve dezenas de músicas gravadas por cantores do rádio. A canção “Time perna de pau” foi gravada, primeiramente, por Fafá Lemos e seu Conjunto, em 1956, e posteriormente, em 1961, pela dupla Ouro e Prata.

Todavia, foi no final da década de 1960 que “Time perna de pau” alcançou notoriedade pela interpretação dos Demônios da Garoa. Em 1969, o grupo gravou um compacto simples contendo as músicas “Time perna de pau”, de Vicente Amar, no lado B e “Timão”, de Samuel Andrade e Paulo Gallo, no lado A. Com longa carreira, o conjunto musical Demônios da Garoa foi formado na década de 1940. Seus maiores sucessos resultaram da parceira com o compositor Adoniran Barbosa, a partir de 1949. Dessa parceria se originaram sucessos como “Trem das Onze”, “Saudosa Maloca”, “O Samba do Arnesto”, “Tiro ao Álvaro” e “Ói Nóis Aqui Trá Veiz”. Na mesma linha, como o próprio título da canção indica, “Time perna de pau” se configura como uma sátira de um time com desempenho futebolístico aquém das expectativas de seus torcedores.

Num preâmbulo, construído discursivamente de modo dialógico, dois torcedores na porta do estádio discutem se irão entrar ou não para assistir ao jogo de seu time, mas o estádio já está cheio. Um deles diz:

Já rasguei a carteira do clube, eu não vô entrá não. A gente chega aqui, pede uma entrada de numerada e os caboclo lá de dentro do buraquinho do guichê diz assim pra gente: se quisé só no gaio. Ou no gaio ou lá no morrinho. E a gente gasta todo o salário da gente em fuguetório, fica rouco, rouco, rouco e esses cara num fazem nem um gol… (DEMÔNIOS DA GAROA, 1969)

Assim, o traço de identidade do torcedor é construído por um linguajar popular, marcado por variações linguageiras e de pronúncia do Português. Em um estádio lotado, não designado na letra, os torcedores não conseguem obter ingresso para o setor das cadeiras numeradas, só restando, segundo o “caboclo” do guichê, subir em uma árvore e sentar no “gaio”, ou então aproveitar um “morrinho” que permita a eles visualizarem o gramado, mesmo que em condições precárias e desconfortáveis.

Conforme o preâmbulo da canção, o perfil dos torcedores é de assalariados, que não poupam com gastos, que compram fogos de artifício para promover um “fuguetório” e gritam até ficarem roucos, em sua performance torcedora, embora o “time perna de pau” não responda satisfatoriamente a tanta euforia e comemoração:

Assim nosso time de futebol, vai mau,

Nosso jogador são tudo,

São “tudo” uns “perna de pau”,

Só “contratemo”, quem “num” sabe nem “chutá”,

Parecemos “muié” de malandro,

Só “sabemo” é “apanhá”,

Mais os “curpado”, são os nosso “direto”,

Que não dão aos “jogado”,

Assistência, “morá” nem “matéria”,

Se “nós tirá” em “urtimo” lugar,

A “curpa” é do “ténico”, que “num sabe orientá”. (DEMÔNIOS DA GAROA, 1969).

Trata-se, pois, de linguagem coloquial, além do tom de humor que perpassa o texto, na composição de uma cena cotidiana de torcedores de futebol, marcada por insatisfação e sofrimento pelo baixo rendimento do time do coração. Na última estrofe, os gritos de incentivo dos torcedores não salvam o time da iminente derrota:

Bola, vai, bola, vem,

Nosso time, entra bem,

Num se “sarva” ninguém, da derrota,

Será “possíver”, como é que pode,

Desse jeito eu morro,

“Nóis” grita, grita, grita,

E os nosso jogador,

Num fazem nem um “gorro”. (DEMÔNIOS DA GAROA, 1969)

Por fim, cabe ressaltar que o lugar social desses torcedores se constrói na letra da canção “Time perna de pau” também pelo linguajar. Embora se trate de uma canção de autoria de Vicente Amar, consideramos que é pertinente atribuir a ela um procedimento semelhante àquele apontado por Adriano de Paula Rabelo no artigo “Adoniran Barbosa e a língua certa do povo” (2020): “Ao expor a cultura e a linguagem dos estratos da sociedade mantidos na invisibilidade, o compositor exerce, ainda que de maneira involuntária, uma resistência às forças mais retrógradas do país.” (RABELO, 2020, p. 37)

A ida ao Maraca em uma tarde de domingo para “ver gol”

A canção “Eu quero ver gol” (1996) integra o segundo álbum do grupo O’Rappa, intitulado Rappa Mundi. Formado em 1993 no Rio de Janeiro, o grupo notabilizou-se no cenário musical brasileiro por seu estilo, influenciado por ritmos como o reggae e o ska, mas também com traços próprios dos ritmos urbanos, entre eles, o rap e o funk.

Em “Eu quero ver gol”, encena-se um dia na vida de um jovem morador de um morro, provavelmente localizado na Zona Norte do Rio de Janeiro, que programa seu domingo de lazer: ir à praia na badalada Zona Sul e, de lá, seguir para o Estádio do Maracanã para torcer por seu time de coração. A primeira estrofe já evidencia sua principal intenção, que é a de “ver gol” no templo sagrado do futebol brasileiro:

Batuque, balanço, swing, praia e carnaval

Hoje no pé do morro tem ensaio geral

Eu quero ver gol eu quero ver gol

Não precisa ser de placa eu quero ver gol (O RAPPA, 1996)

O ritmo musical e a performance corporal do balanço e do swing animam esse jovem torcedor, que também pensa no carnaval e no ensaio geral no pé do morro em que mora. Aparentemente, o ápice do dia seria a vivência epifânica de um gol, que “[n]ão precisa ser de placa eu quero ver gol”. Na estrofe seguinte, o jovem mostra-se ansioso pela chegada do domingo, não obstante a distância espacial que tem de percorrer para ir à Praia de Copacabana, para o banho de mar:

Dois dias sem dormir chega domingo de manhã,

Fica difícil passar sem um banho de mar

Tem a distância lotação, tumulto então,

Tô no favelinha, peguei fora da linha

Méier-Copacabana é o bonde ideal,

No ponto final o rebu é total

Pula pela janela pro bonde é normal

Zuando no asfalto, zuando na areia

Quando chegar na água vou me acabar

Quando chegar na água jacaré o que vai dar, (O RAPPA, 1996)

Toda a agitação no transporte, uma verdadeira aventura para se chegar à Zona Sul, seja o lotação, seja o ônibus da linha urbana, para, enfim, “zuar” no asfalto e na areia da “princesinha do mar”, como Copacabana é designada na letra da canção de Nana Caymmi, de 1985. O linguajar desse jovem também é marcado por gírias, por exemplo, pelo termo “bonde”, que significa “estar em grupo”, “estar em companhia”, ou por “rebu”, para “desordem”, “confusão”. Mas, ao final da longa jornada o jovem só quer “se acabar” na água, se divertir pegando “jacaré”, ou seja, entrando de peito em uma onda e deixando o corpo ser levado até a praia. Mas o “barato” está também no consumo na areia, em geral, garantido por ambulantes que, assim como ele, se deslocam da Zona Norte e de outras partes da cidade para tentar garantir o sustento para suas famílias vendendo diversos produtos, conforme os versos a seguir:

Tem limão, tem mate, melancia fatiada,

O globo sal e doce, dragão chinês (2x)

Tô no rango desde as 2 e a lombra bateu

O jogo é as 5 e eu sou mais o meu

Tô com a geral no bolso garanti o meu lugar

Vou torcer, vou xingar pro meu time ganhar… (O RAPPA, 1996)

Bebidas, frutas, salgados e sorvetes estão ali para serem consumidos. E quem está familiarizado com o Rio logo identifica o biscoito de polvilho da marca “Globo” e também os picolés “Dragão Chinês”, sempre mais barato que os sorvetes das grandes marcas que dominam o mercado. E o jovem está comendo o “rango” desde as 02 horas da tarde e curte um relaxamento extremo, a “lombra”, mas está atento que às 05 horas o juiz trilará o apito no Maraca, e ele precisa se agitar e seguir da praia para o estádio. Assim como os produtos que consome na praia, o dinheiro só dá para ingressar na Geral, espaço que muitos olham com nostalgia após a reforma do Estádio do Maracanã, por conta da Copa das Confederações em 2013 e, respectivamente, da Copa do Mundo de 2014, quando a Geral deixou de existir e, com ela, toda uma cultura popular do torcer: “Vou torcer, vou xingar, pro meu time ganhar”. O torcedor, muito animado com o seu domingo, tem um desejo: “Porque eu quero ver gol eu quero ver gol/Não precisa ser de placa eu quero ver gol”.

O sofrimento e a alegria do torcedor – a guisa de conclusão

Conforme bem aponta Jefferson Nicássio Queiroga de Aquino em sua Tese intitulada O torcer no futebol como possibilidade de lazer e vínculo identitário para torcedores de América-MG, Atlético-MG e Cruzeiro (2017),

[…] como elemento importante de nossa cultura, vivenciamos o futebol das mais variadas formas nos nossos momentos de lazer, seja na prática deste esporte através das peladas de rua ou em quadras e campos, rachas e bate-bolas, na leitura de notícias em jornais e ou pela internet, jogos de computador ou vídeo game e também na assistência despretensiosa ou como torcedor de algum clube, seja em casa pela televisão ou indo aos estádios. (AQUINO, 2017, p. 13)

Nas canções analisadas neste breve estudo, enfocamos, justamente, esta última modalidade do torcer enquanto lazer: a ida ao estádio para torcer pelo time de coração. Mesmo que haja diferenças nas espacialidades tratadas nas canções – um estádio de São Paulo nos anos 1950/1960 (Pacaembu, Parque Antártica, Canindé, Parque São Jorge etc.) e o Maracanã nos anos 1990 –, a emoção de ver seu time em campo e de marcar gols em busca da vitória é o que move os torcedores. Enquanto estes, na canção “Time perna de pau”, se queixam da baixa qualidade técnica de seu time, que não fazem jus sequer ao “fuguetório” que eles promovem ao comprar rojões com o pouco que sobra de seus salários, e aos gritos incansáveis de incentivo, o jovem da canção “Eu quero ver gol” não imagina seu domingo sem praia e futebol, não obstante as condições adversas em que vive, superadas com todos os esforços. Se o tom dos primeiros é de queixa, o deste último é de desejo: o de ver um gol marcado da Geral do Maracanã, e nem precisa ser um gol resultante de uma bela jogada ou da habilidade de um atacante, “não precisa ser de placa”, o gol é o momento máximo, epifânico, de pura iluminação que faz os torcedores extravasarem de emoção.

Referências Bibliográficas

AQUINO, Jefferson Nicássio Queiroga de. O torcer no futebol como possibilidade de lazer e vínculo identitário para torcedores de América-MG, Atlético-MG e Cruzeiro (2017). Tese. Belo Horizonte: EEFFTO/UFMG, 2017. Disponível em: http://www.eeffto.ufmg.br/eeffto/DATA/UserFiles/files/Disserta%C3%A7%C3%A3o_ppgie_Jefferson_Aquino(1).pdf. Acesso em: 17 mar. 2023.

COSTA, Nelson Barros da. A produção do discurso lítero-musical brasileiro. Tese. São Paulo: PUC-SP, 2001, p. 377-390. Disponível em: http://www.educadores.diaadia.pr.gov.br/arquivos/File/2010/artigos_teses/LinguaPortuguesa/tese_nelson.PDF . Acesso em: 17 mar. 2023.

DEMÔNIOS DA GAROA. Time perna de pau (1969). Disponível em: https://www.letras.mus.br/demonios-da-garoa/710003/. Acesso em: 17 mar. 2023.

O RAPPA. Eu quero ver gol (1996). Disponível em: https://www.letras.mus.br/o-rappa/75764/. Acesso em: 17 mar. 2023.

RABELO, Adriano de Paula. Adoniran Barbosa e a língua certa do povo. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros. Brasil, n. 77, p. 37-50, dez. 2020. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rieb/a/GtMbpJ4qCs6wTqVPd9LXRxJ/?format=pdf&lang=pt. Acesso em: 17 mar. 2023.

15 chamadas curiosas sobre o Bloco Nerd em BH de 2016 a 2023: noticiário jornalístico divertido

Bloco Nerd é como se autodenomina o grupo de pessoas que desfilam no carnaval compondo o bloco Unidos da Estrela da Morte, fundado em 2015 por membros do fã-clube do filme Star Wars chamado Conselho Jedi Minas Gerais1.

O bloco apresenta a temática Nerd levando cosplayers para as ruas sob ritmos de músicas de cinema, vídeo game, seriados e desenhos que remetem a cultura nerd e geek. Como a presença do sujeito Nerd (pessoa vista pelo senso comum como aquele que é caseiro, só gosta do computador e videogame…) não é uma prática muito comumente observada numa festa tão popular como o carnaval, fiz um levantamento sobre como o noticiário tem falado desta temática específica.

Cortejo do Bloco Unidos da Estrela da Morte em Belo Horizonte/MG – 2018

Mas antes é preciso uma breve contextualização.

Desde a retomada do carnaval de rua na capital, concretizada após o fatídico Decreto nº13./789/20092 sobre a Praça da Estação, observou-se um crescimento acelerado não somente no número de novos blocos de rua, mas também na diversidade dos temas que influenciaram a criação de cada um deles.

Foto: https://preprojetozcpracadaestacao.wordpress.com/2015/06/29/15-praia-da-estacao/

Numa breve busca no Google por expressões chaves como “bloco temático BH”, “tema dos blocos em BH”, “diversidade dos blocos de rua BH” e minhas observações nos últimos anos, há  temas que fazem homenagem a artistas, sendo alguns deles: Bloco Lua de Crixtal (apresentadora Xuxa), Bloco Volta Belchior (cantor Belchior), Bloco Românticos São Loucos (cantor Vanderlee), Bloco da Esquina (Lô Borges, Milton Nascimento e Beto Guedes do Clube da Esquina), Bloco Asa de Banana (bandas Asas de Águia e Chiclete com Banana) e Bloco Turu Turu (grupo Sandy e Júnior).

Blocos com temática da cultura Afro mostram que seu protagonismo histórico, religiosidade e pautas de lutas como a promoção da igualdade racial. São anualmente convidados para se unir na abertura oficial do carnaval da cidade e este ano sete blocos foram anunciados neste evento de abertura que se chama Kandandu3: Bloco Oficina Tambolelê, Afoxé Bandarerê, Bloco Magia Negra, Bloco Swing Safado, Bloco Arrasta Favela, Odum Orixás e Samba da Meia Noite.

Blocos com temática voltada ao público LGBT+ como o Abalô-caxi, Garotas Solteiras, @Absurda (este, fruto de uma famosa festa do gênero na cidade) e Truck do Desejo são nomes que me apareceram nos primeiros resultados da busca específica por blocos com temática de gênero.

Há bloco com tema de liberação da Maconha (Bloco Manjericão), bloco com temática infantil (APAEtucada, Fera Neném), morte (Bloco Fúnebre, Bloco da Saudade), luta antimanicomial (Tamborins Tantãns), inclusão (Todo Mundo cabe no Mundo), mais de 400 opções e diversos temas só este ano dentro da programação oficial do carnaval da cidade. Como será que o noticiário aborda isto?

Jornalismo Carnavalesco no Brasil

Na busca por publicações do jornalismo, encontrei termos que serão usados aqui para falar do carnaval como Desfile de Passarela, que são os campeonatos entre escola de Samba, Desfile dos Blocos Caricatos que também é uma competição de passarela, e os Cortejos dos Blocos de Rua que não competem entre si, são centenas de blocos só em Belo Horizonte e a cobertura deles podem acontecer através de transmissão por televisão, noticia na TV durante os telejornais, programas especiais dedicados ao Carnaval mais especificamente nos meses ao redor de fevereiro, noticias em jornal impresso, matérias digitais e publicações independentes.

Durante o Carnaval, são os repórteres de outras editorias que precisam “sambar” pra conseguir cobrir a festa pelo país. Nas transmissões de desfiles de escolas de samba são, novamente, os jornalistas esportivos que fazem narrações e comentários. Quando acaba o Carnaval, acabam as escolas de samba para o grande público. Vão ser redescobertas apenas no final do ano, quando recomeçam a, timidamente, ganharem algum espaço na grade jornalística das grandes emissoras.

(RAMOS, 2013)

O estudo de André Ramos foi um dos que me motivou a refletir sobre as publicações irreverentes sobre o bloco Unidos da Estrela da Morte, bloco que também desfilo. Ele investigou a cobertura do carnaval de passarela das escolas de samba do Rio de Janeiro e observou que “a primeira abordagem do Carnaval pela imprensa foi através das crônicas, com caráter satírico e crítico, que incorporavam o verdadeiro espírito da festa, promovendo reflexão tanto mental quanto imagética da sociedade” (p.57), e lamenta que nos dias atuais percebe a mídia conseguindo deturpar os desfiles tratando as escolas como mero produto comercial para conseguir mais espectadores, sejam eles interessados ou não nas Escolas. Lembra que são cada vez mais frequentes símbolos da cultura pop nos desfiles, como filmes americanos e desenhos animados, para ampliar ainda mais o público telespectador. Assim percebemos que há uma mídia especializada não só cobrindo, como também interferindo no significado da manifestação cultural.

Como os cortejos dos blocos de rua não são competições nem são televisionados em Belo Horizonte, a interferência da mídia nos cortejos parece ser mais difícil de acontecer, então vou observar as publicações que encontrei na internet usando palavras chaves no site de busca Google (digitei bloco unidos da estrela da morte + ano e selecionei veículos mais conhecidos na cidade) e também algumas imagens que consegui dos colegas do bloco, de jornal impresso e prints de vídeos, para uma reflexão descompromissada.

Notícias sobre o bloco Unidos da Estrela da Morte em 2016

  1. Bloco inspirado em Star Wars promete arrastar nerds foliões em BH. O Unidos da Estrela da Morte desfila pela primeira vez neste carnaval. ‘Cospobre é super bem-vindo’, diz organizadora do bloco. Disponível em G1 publicado em 30/01/2016 no site Globo.Com.

A chamada destaca o foco do bloco em Star Wars e a possibilidade de se usar cospobre, justificando no corpo da notícia que ninguém precisava deixar de ir caso não tivesse cosplayer (traje mais elaborado, usado pelos membros do fã-clube cuja qualidade ja´era conhecida pelos seguidores do grupo que atua há mais de 24 anos na cidade, neste meio nerd). Cospobre é, então o contrário de cosplay e a chamada é encorajadora, inclusiva. Pela chamada já parece ser uma boa opção para o leitor nerd fã de Star Wars ir se divertir com o traje que tiver em casa, decisão que nao tomaria se estivesse indo a um encontro do fã clube, por exemplo.

2. “Unidos da Estrela da Morte sai no carnaval de BH” notícia publicada no portal do jornal Estado de Minas em 06/02/2016 disponível no site EM.com.

Nesta chamada a notícia informa que o cortejo aconteceu e acrescenta um vídeo gravado pelo próprio cinegrafista do jornal mostrando momentos do cortejo como o Abre Alas, a participação do Unidos da Estrelinha (ala infantil) e a Bateria Nerd cantando o grito de guerra do bloco, permitindo através das imagens que as pessoas percebam elementos nerd em especial da saga Star Wars como bloco propõe.

3 . Notícias do Bloco Unidos da Estrela da Morte em 2017” publicada em 17/11/2017 no Jornal Contramão do Centro Universitário Una disponível no site deles.

A chamada cita O Lado Negro fazendo uma referência direta à saga Star Wars onde o Lado Negro da Força é o Oposto ao Lado da Luz da Força, pois emana poder de emoções negativas associadas com morte e destruição. Já neste segundo ano de desfile, respondo como integrante, o bloco se preocupou em substituir o Lado Negro por Lado Sombrio pois de fato é o que a expressão quer dizer, eliminando assim resquícios de racismo e preconceito, temas muito fortes entre os fãs de Star Wars, que possam ser ligados pelo mal uso das palavras que são tradução de Dark Side. O corpo da notícia não relaciona o conteúdo a frase do Lado Negro, cita muitos depoimentos sobre o desfile, mais positivos que negativos. Os entrevistados citam a diversão que surpreendeu expectativas mesmo pra quem não gosta do estilo musical tradicional do carnaval.

4. “Um carnaval diferente: guerra ou samba? É o bloco Unidos da Estrela da Morte, que misturam Star Wars com a tradicional festa brasileira.” publicado em 25/02/2017 disponível no site da Rede Minas.

A chamada em si foi para a cobertura do Carnaval geral, cujo corpo da notícia citou vários blocos com vídeos. Em seguida usa termos do filme Star Wars para anunciar como foi o cortejo. Destaco a última frase da notícia que mostra uma frase escrita ao contrario, exatamente como diria um dos personagens principais da saga, o Mestre Yoda: pular carnaval, você vai.

Notícias do Bloco Unidos da Estrela da Morte em 2018

5. Universo Star Wars invade Carnaval de Belo Horizonte: Unidos da Estrela da Morte reúne fãs da clássica saga e é apenas um dos mais de 480 blocos da capital mineira: publicada em 10/02/2018 disponível em Portal Terra.

A palavra “invade” faz alusão aos termos usados no filme cujos personagens fazem invasões a naves e espaços do inimigo, mas também denota a invasão a um espaço que não é comum a presença do nerd, o carnaval de rua.

6. Até o lado negro da força caiu na folia. Publicado em 10/02/2018 no jornal Hoje em Dia

O Lado Negro da Força, expressão que remete ao lado sombrio da saga Star Wars está na chamada para se referir que até o Darth Vader da foto (folião vestido de preto) teve coragem de conhecer Bloco Nerd, e ainda levou a família, duas princesas Leia! O personagem é vilão no filme e não tem cara de quem se dedica a momentos de lazer, talvez por isso a chamada soou surpreendente.

7. Para fazer a cabeça. Jornal Estado de Minas impresso, caderno Especial, pag.8 em 18/02/2018.

Duas integrantes do Bloco Nerd apareceram nesta seleção que destacou adereços usados na cabeça de foliões de diversos blocos, posaram como a senadora Amidala do filme Star Wars.

8. “Chewbacca e fãs de “Star Wars” pulam carnaval em bloco de BH” publicado em 10/02/2018 no portal UOL.

Muitas noticias deste ano focaram em fotografia, mais de 5 imagens no noticiário de vários meios digitais e vídeos. Foi o auge do número de foliões e blocos nas ruas desde o renascimento da cultura carnavalesca em BH e cogitar ter personagens de sua saga favorita no mesmo carnaval que você parece ser um belo atrativo ao folião que gosta da cultura nerd.

Notícias do Bloco Unidos da Estrela da Morte em 2019

9. Bloco dos fãs de Star Wars tem pedido de casamento durante desfile em BH publicado em 2/03/2019 disponível no site do G1. Foi uma surpresa ate mesmo para os integrantes e a direção do bloco só soube no dia. O casal estava com cosplay de personagens Jedi de Star Wars e contaram com a encenação de vários sabres de luz ao fundo, que naturalmente foram erguidos para celebrar o momento inusitado.

10. “Blocos de Carnaval saem do óbvio para contemplar todos os públicos. Publicado em 15/02/2019 disponível no site do jornal Edição Brasil.

Cita também os blocos Que Mário?, Carnarock, Turu turu, Funk You e Bloco da Bicicletinha.

Notícias do Bloco Unidos da Estrela da Morte em 2020

11. Festa ‘nerd’: Unidos da Estrela da Morte promove harmonia entre os lados escuro e luminoso da Força. Publicado em 22/02/2020 disponível no site do jornal Hoje em Dia.

Muitas chamadas fazem alusão ao light e dark side da saga pois é o equilibrio entre os dois lados que constrói toda a trama em Star Wars. Chamar o carnaval de Festa mostra que de fato os foliões vivem momento divertidos nesta nova prática do grupo de cosplayers.

12. “Nerd também samba: público do bloco Unidos da Estrela da Morte é o ‘cara caseiro'” publicada em 23/02/2020 disponivel no site do Portal Uai.

Somente com esta chamada me sensibilizei para abordar o tema do Bloco Nerd numa dissertação, que está em andamento. Até então enxergava o bloco como mais um tema dentre tantos outros criativos no carnaval da cidade. A notícia versou sobre o Nerd raiz (caseiro) que de fato saiu de casa para fazer seu Carnanerd e um estudo parece ser interessante para investigar se isso foi revolucionário para a cultura geek ou só mais um bloco dentre cinco centenas diferenciadas.

Notícias do Unidos da Estrela da Morte em 2023 (em razão da pandemia da Covid -19 o bloco não realizou cortejo nos anos de 2021 e 2022)

13. “Bloco de carnaval nerd de MG terá ala de Star Trek“, publicado em 17/02/2023 no site Trek Brazilis.

De fato o bloco Nerd anunciou em seu site que convidou outras alas de temática geek para comporem o bloco este ano, e a lendária rivalidade entre a saga Star Wars e Star Trek foi por água abaixo já que os nerd marcharam juntos. A surpresa foi a notícia ter sido postada em um site que não é de veículo de comunicação geral, não é um grande portal do jornalismo como são as que tenho encontrado online. Trata-se de um side de fãs de Star Trek, e neste levantamento superficial não encontrei outros grupos nerd comentando sobre este bloco de carnaval, talvez porque não faça parte da cultura nerd estar neste ambiente. |Ampliei neste momento a varredura específica e nem mesmo em outros sites sobre fãs clubes de Star Wars não observei postagens a respeito do Unidos da Estrela da Morte. Talvez os demais nerd não tenham curtido esta aproximação ou talvez não tenha chegado até eles nem uma notícia a respeito dos cortejos.

14. “Blocos de Carnaval: conheça os mais diferentes do Brasil“, publicado em 14/02/2023 no site da agencia de viagens 1, 2, 3, Milhas.

Esta notícia chamou atenção por comprovar que um bloco nerd pode ser objeto de atrativo para turistas. No blog do 1 2 3 Milhas, cinhecido site de agencia de viagens, convidaram os seguidores para fazer a viagem até BH para conhecer o bloco, destacando o perfil do público “família”com a frase: “Salve no seu bloco de notas as datas dos cortejos, que são recomendados para toda a família curtir junto, inclusive com os pequenos”. Foi observada a publicação da agenda do bloco nerd também no site Passeio,Org que igualmente orienta seus seguidores para buscarem os melhores destinos de viagens com destino a blocos de carnaval.

15. “Bloco Unidos da Estrela da Morte celebra a cultura geek em BH”. Publicado em 18/02/2023 no site do Jornal Hoje em Dia.

O noticiário parece ja perceber que o bloco não é mais temático de Star Wars e sim da cultura nerd/geek num geral. O tema foi ampliado já no segundo ano, devido a crescente presença de outras franquias presentes nos trajes do publico seguidor, cada ano mais diversas. Chama o carnaval de celebração o que sinaliza que pode mesmo ser uma experiência divertida.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A cobertura observada abordou termos e expressões do meio nerd legitimando a temática. Esta prática comunicativa mostra como é importante relatar essa expressão através da midia, no sentido de ajudar a popularizar a essencia do blodo a ponto dele ser compreendido pela proposta que oferece.

Um noticiário empenhado em usar o palavreado nerd para se comunicar com o publico geral, mostrou tratar com ética a temática que para muitos poderia abrir espaço para bulling, preconceito e piadas a cerca da cultura nerd. Seria preocupante encontrar nestes veículos tão populares qualquer tipo de comparação com outros blocos tanto no quesito animação quanto no quesito de respeito a diversidade.

As noticias coletadas chamaram atenção por tratar o carnaval dos nerd como possibilidade real de diversão, cheio de cosplayers e música para todas as idades. Este é o caminho, como deve ser.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

RAMOS, André Mariz. Cobertura jornalística do carnaval: panorama da abordagem do desfile das escolas de samba em diferentes épocas e veículos. 2013. 61 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Comunicação – Habilitação em Jornalismo) – Escola de Comunicação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.

MOLNAR, Pedro Paulo Guimarães. Cultura popular: Análise das narrativas do Carnaval a partir da cobertura da Rádio. Gaúcha. 2018.Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Jornalismo) Faculdade São Francisco de Assis. Porto Alegre, 2018

NOTAS

  1. Em vários estados no Brasil existe um fã-clube da saga Star Wars, filme setentista qeu em Belo Horizonte completou 24 anos, reunindo pessoas para se divertir vestidos ou não de cosplayers com agenda de atividades disponível em http://conselhojediminas.com.br
  2. O Decreto nº 13.798/2009 do então prefeito Márcio Lacerda, proibiu a realização de eventos de qualquer natureza na Praça da Estação, gerando revolta na população que rebateu com diversas campanhas de ocupação da cidade, dentre elas o Praia da Estação que contava com mobilização criativa e muita música exigindo direitos e dando vida a retomada dos blocos de rua.
  3. Para oficializar a abertura do carnaval de BH a Prefeitura e Belotur junto com associação Abafro realizam o Kandandu (que significa “abraço” na língua kimbundu) consiste num encontro de espetáculo com de vários blocos deste tema. Notícia “Kandandu abre oficialmente a folia no feriado de carnaval em BH” publicada em 16/02/2023 disponível em  https://prefeitura.pbh.gov.br/noticias/kandandu-abre-oficialmente-folia-no-feriado-de-carnaval-em-bh

NÃO SOMOS EDUCADOS PARA O LAZER – um relato de experiência

Autora: Eliane Leroy Alves

Orientadora: Profa. Dra. Ana Cláudia Porfírio Couto

GESPEL – Grupo de Estudos em Sociologia e Pedagogia do Esporte e do Lazer

Começo esse relato contando um pouco sobre mim: sou servidora técnica-administrativa em educação e profissional atuante na Universidade Federal de Minas Gerais desde 2005. Desde então, tive experiências em unidade acadêmica e unidade administrativa, dois nichos distintos quanto ao público e as funções dentro da universidade. Além disso, sou mãe de dois, mulher, extremamente exigente comigo mesma, perfeccionista e centralizadora. E, agora, também sou discente do curso de mestrado do programa de pós-graduação em Estudos do Lazer.

Acredito que para além da questão profissional desse relato, não posso deixar de fora os fatores que me influenciam enquanto pessoa. Sendo mulher dentro de uma sociedade tão estruturalmente machista, a pressão de ter que cuidar de todos o tempo todo e de assumir uma carga de responsabilidades muito grande influenciam com toda certeza a minha disposição para incluir práticas de lazer no meu dia. E enquanto mãe, eu constantemente me vejo colocando as necessidades dos meus filhos na frente das minhas, tornando meu tempo disponível para dedicar a mim mesma cada vez menor. Tudo isso somado a um mestrado iniciado na pandemia, que culminou em toda a discussão que faremos nesse texto.

Ao cursar a disciplina do programa “Lazer e Processos de Inclusão Social”, em uma dinâmica da turma nos foi solicitado que respondessemos uma pergunta aparentemente simples: qual o seu lazer hoje? Para minha inquietação, mesmo depois de pensar muito, não consegui responder. E estando inserida nesse tema, comecei a estudar um pouco sobre a relação entre lazer e trabalho. A partir daí, fiz uma retrospectiva da minha vida como servidora da UFMG e refleti sobre como se dá a minha relação com o trabalho atualmente e no passado, em quais momentos fui prioridade para mim mesma, em quais momentos me foi permitido cuidar da minha saúde e da minha mente, etc. De maneira geral, comecei a questionar como eu articulava o meu tempo de trabalho e as minhas tarefas cotidianas, ou seja, como estava conduzindo a minha vida.

O fato é que vivemos em um sistema capitalista no qual o trabalho está diretamente ligado à produtividade e seguindo essa lógica, não fazer nada é inadmissível. Além disso, ter uma vida social ativa se torna financeiramente impossível e por isso, as atividades de lazer sempre ficaram em segundo plano. Sendo assim, analisando como me sinto hoje em relação a minha rotina de vida, percebo que o que prevalece é a sensação de cansaço e exaustão, agravadas pela normalização de rotinas de trabalho excessivas e pouco saudáveis.

Para exemplo, houve situações em que 15 minutos de interrupção de trabalho – um momento em que seria possível espairecer e relaxar um pouco, conversar sobre outros assuntos e até mesmo sobre o trabalho, porém de uma forma descontraída – eram controlados e cronometrados, porque as demandas de trabalho não podiam esperar ainda que isso significasse o agravamento da qualidade e disposição de trabalho dos servidores. A princípio achamos ser uma atitude normal, pois entendíamos que a produtividade falava mais alto e afinal, estávamos ali para isso. Mas hoje em dia entendo que não, isso não é normal.

Além disso, já tive que deixar de participar de projetos de esporte e lazer (ofertados pela própria UFMG) que me traziam benefícios, porque com a alteração do horário das atividades ficaria impossível cumprir minha jornada de trabalho, uma vez que somos controlados por um ponto eletrônico. E, mais uma vez, enxergamos aquela situação como normal, a rigidez do cumprimento da jornada de trabalho não era nada além da nossa obrigação enquanto profissionais e abrir mão de um “luxo” era o mínimo que podíamos fazer. Mas não, isso não deveria ser normal.

Ironicamente e contrariando esse cumprimento de jornada de trabalho, é impossível deixar de destacar os hábitos de comunicação advindos do trabalho remoto que se mantiveram no retorno presencial. Como por exemplo, o uso indiscriminado do whatsapp pessoal com demandas e assuntos de trabalho em qualquer horário e dia da semana, incluindo sábados, domingos, feriados e período de férias. As jornadas de trabalho tornaram-se infinitas, dificultando desligar a cabeça do trabalho, quando se tem mais demandas chegando o tempo todo no celular. Será que não existe mais tempo em que não se fale de trabalho? Isso também definitivamente não deveria ser normal.

Quando se fala de qualidade de vida, produtividade, rendimento, e bem-estar social dos servidores, não adianta só desenvolver o lado material e deixar o lado humano para trás. Não se faz servidores mais dispostos a trabalhar se os levam à exaustão, não sobrando tempo para cuidar de si mesmos e da família. E, com todas as pontuações em mente, porque nós continuamos normalizando rotinas de trabalho pouco saudáveis? Por que nós não somos educados para o lazer.

Educação para o lazer diz respeito à prioridade, programação de vida, viver sem culpa. Significa incluir o lazer na nossa vida como se inclui qualquer outra coisa primordial, como moradia, educação e alimentação. É conseguir perceber – cada pessoa em seu tempo, espaço e contexto de vida – o que significa ter lazer, e colocar esse significado em prática entendendo que temos esse direito e precisamos exercê-lo.

Durante a minha retrospectiva, percebi que eu entendia que momentos de lazer só seriam possíveis se eu saísse da rotina, mas hoje em dia, eu entendo que esses momentos podem estar presentes no meu cotidiano e eu preciso permitir que eles aconteçam. Hoje eu considero o lazer como necessidade, entendo que preciso me programar para que os períodos de lazer sejam vividos de forma plena e consciente, sem culpa. Além do que, ao me programar é possível entender quais práticas de lazer são significativas para mim e como elas cabem dentro da minha rotina diária, sem influenciar as obrigações e afazeres.

Por isso, eu digo que não fomos educados para o lazer. Com 18 anos de universidade eu precisei estar inserida em um programa de pós-graduação interdisciplinar em Estudos do Lazer para começar a dar a devida importância ao assunto e desmistificar a concepção de que o lazer é supérfluo e caro. Sei também que o meu percurso é longo e ainda vivo o trabalho, continuo exigente comigo mesma, perfeccionista e centralizadora, mas estou me educando para que o lazer seja visto como algo essencial, não como um luxo. Ainda que não sejamos educados para o lazer e sim para a produtividade a todo custo, é necessário que adotemos uma percepção crítica sobre a “normalidade” dos fatos. Não fomos educados para o lazer, mas ainda há tempo. 

Sobre a autora:

Formada em Administração de Empresas (1997) e Pós-Graduada em Gestão Estratégica de Marketing (1999) pelo Centro Universitário Newton Paiva. Secretária do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Reabilitação – PPGCR da Escola de Educação Física, Fisioterapia e Terapia Ocupacional da UFMG desde 2019 e mestranda do programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Estudos do Lazer – PPGIEL (turma 2021). Membro do Grupo de Estudos em Sociologia e Pedagogia do Esporte e do Lazer (GESPEL).

Revista Recorde: notícias, breve balanço e dossiê

Por Rafael Fortes

Está no ar o número de dezembro de 2022 de Recorde: Revista de História do Esporte, cujo sumário está ao final deste texto. São nove artigos e uma resenha (em dois idiomas). O total de artigos nas duas edições deste ano, 24, provavelmente é o recorde (perdão, não resisti) nestes 15 anos de revista, ao longo dos quais colocamos no ar 30 números, sempre em junho e dezembro, sem atraso. Como se costuma dizer por aí, quinze anos não são quinze dias, nem quinze meses.

A imagem da capa é essa aí embaixo. Está na Brasiliana Fotográfica Digital, da Biblioteca Nacional, e foi sugerida por Victor Melo.

Título: “Em recreio. Um grupo de aprendizes após 10 minutos de ginástica sueca.” NP 145
– Foto de album comemorativo do 5º mês de funcionamento da Escola.
– Local: Maceió (AL)
– Ano: 1910
Fonte: Brasiliana Fotográfica Digital
https://brasilianafotografica.bn.gov.br/brasiliana/handle/20.500.12156.1/7907

*  *  *

Aproveito a oportunidade para discorrer um pouco mais sobre a Recorde e alguns desdobramentos recentes.

Após severos problemas nos dois últimos anos, em 2022 conseguimos retomar o padrão de trato com os autores e de prazos nos fluxos de avaliação e publicação. Reformulamos a Equipe Editorial, com a mudança de função de alguns membros e a entrada de outros. Fica aqui meu agradecimento a todos pelo trabalho desempenhado ao longo deste ano, em especial a dois contingentes de colegas queridos:

  • Aos membros do Sport: Laboratório de História do Esporte e do Lazer, no qual Recorde foi planejada, iniciada e continua sendo feita. Um grande salve àqueles que atuaram como editores responsáveis por anos específicos passados de publicação da revista;
  • Aos que entraram na equipe este ano – Igor Maciel da Silva, Leonardo do Couto Gomes, Letícia Cristina Lima Moraes e Vitor Lucas de Faria Pessoa -, bem como àqueles que colaboraram em diferentes funções. (Todas elas, é sempre importante registrar, não remuneradas, como é costume no nosso sistema científico, há décadas subfinanciado e baseado grandemente em trabalho amador e voluntário, como se estes adjetivos não fossem uma antítese da própria ideia de trabalho.)

*  *  *

Quanto à circulação e reconhecimento internacional, trago indícios animadores. Um deles é a continuidade da procura por parte de cientistas que escrevem trabalhos em idiomas distintos do português. Em 2022 veiculamos quatro artigos em espanhol (três de pesquisadores sediados na Argentina e um nos Estados Unidos), e uma resenha em inglês (de pesquisador atuante no Canadá).

Temos contado também com o apoio inestimável de periódicos, instituições e colegas do exterior. Entre as publicações científicas, durante anos o Journal of Sport History, por meio de diferentes editores, autorizou que traduzíssemos para a língua portuguesa e publicássemos artigos, medida essencial para o estabelecimento e consolidação de nossa revista. Vale mencionar também Materiales para la Historia del Deporte, periódico sediado na Espanha e que, em certa medida, nos inspirou.

Entre as instituições, obtivemos apoio em dois editais de apoio a periódicos da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ). A North American Society for Sport History (NASSH), entidade científica responsável pelo Journal of Sport History, foi fundamental na viabilização do acordo para as traduções mencionado acima.

Quanto aos colegas estrangeiros, tivemos o privilégio de estabelecer diferentes parcerias e colaborações, algumas pontuais, outras duradouras.

Douglas Booth nos apoiou de diferentes formas ao longo dos anos, inclusive cedendo artigos para tradução e viabilizando contatos e parcerias internacionais. O número publicado esta semana traz uma resenha inédita dele a respeito do livro póstumo From Sea-Bathing to Beach-Going: A Social History of the Beach in Rio de Janeiro, Brazil (capa acima), de Bert Barickman, editado por Hendrik Kraay e Bryan McCann. Bert foi um interlocutor de muitos anos e uma das primeiras pessoas a me incentivar a pesquisar as relações entre surfe, juventude e cultura, tema de minha pesquisa de doutorado e de investigações posteriores. Nossa primeira conversa se deu num bar do Arco do Teles. Foi ele quem escolheu o local, próximo à estação das Barcas – o primeiro exemplo da imensa gentileza que o caracterizava, pois eu morava em Niterói. Ao longo dos anos, nos encontrávamos a cada vinda dele ao Rio para sua pesquisa sobre as praias (discorri melhor sobre isso neste texto). Seu trabalho não foi finalizado a tempo por ele, que nos deixou de forma precoce em novembro de 2016. Graças ao trabalho dos editores citados e de outras pessoas, em 2022 finalmente o material rascunhado por Barickman veio à luz. A resenha de Booth – disponível em inglês e em português – faz jus à grandeza da obra, que já tive a oportunidade de ler.

Em vida, Bert infelizmente publicou apenas dois artigos com resultados parciais da pesquisa de mais de uma década. Ao mesmo tempo em que lamentei e lamente imensamente seu falecimento, me vem sempre ao rosto um leve sorriso quando lembro que seu último artigo publicado em vida saiu em junho de 2016 na Recorde: Medindo maiôs e correndo atrás de homens sem camisa: a polícia e as praias cariocas, 1920-1950. Eu e Victor Melo levamos um tempo para convencê-lo, fosse pelo perfeccionismo que lhe marcava, fosse por sua sempre cheíssima agenda de trabalho, na qual muitas vezes doava generosamente tempo para ajudar os outros, sobretudo orientandos e ex-orientandos. O artigo foi traduzido para o inglês e constitui o último e mais extenso capítulo do livro. O original em português que publicamos tem 66 páginas. Porque, né, de que adianta editar voluntariamente uma revista científica se ficarmos limitados a copiar a tacanhez das normas e práticas da maioria dos demais periódicos e das agências de fomento? Neste caso particular, quanto teríamos perdido de uma pesquisa fora-de-série se tivéssemos nos apegado ao máximo de 15 ou 20 páginas exigido por tantas publicações por aí?

O estímulo e interesse de Douglas Booth e de Murray Phillips (atual presidente da NASSH) por Recorde ao longo dos anos tem sido muito importante. O livro Routledge Handbook of Sport History (capa abaixo), organizado por ambos e Carly Adams e lançado em 2021, há um capítulo sobre Recorde na parte 5, dedicada aos periódicos científicos de história do esporte. Sobre a trajetória da revista, foi publicado também, em 2021, o artigo Recorde: Revista de História do Esporte – Um cenário dos seus 13 anos de publicações.

Diversos colegas da América Latina e Península Ibérica também têm colaborado conosco, aos quais agradecemos ao mencionarmos o nome de Pablo Scharagrodsky.

Alguns destes colegas nos concederam entrevistas que vêm sendo publicadas desde que criei esta seção em 2016. Creio que ela contribui para oferecer aos interessados um tipo de diferente de leitura, assim como a possibilitar uma apresentação dos autores, de seus trabalhos e trajetórias de maneira um pouco menos formal e mais livre, bem como saber um pouco de suas trajetórias de vida e de sua ligação com o esporte. Até o momento publicamos entrevistas com os pesquisadores Carles Santacana (realizada por Euclides de Freitas Couto), Douglas Booth, Glen Thompson, João Malaia e Robert Edelman, bem como com a jornalista e narradora Isabelly Morais (realizada por Silvana Vilodre Goellner).

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Aos interessados em publicar, informo que Recorde está com chamada aberta para o Dossiê História do Esporte e Espaço:

Organizadores: Bruno Adriano Rodrigues da Silva (Unirio) e Victor Andrade de Melo (UFRJ)

 

Tratando-se de prática/fenômeno que se estruturou a partir do século XVIII, articulado com as mudanças em curso nos âmbitos social, cultural, político e econômico, não surpreende que muitos investigadores tenham se dedicado a perceber as relações entre esporte e cidade, algo inescapável dado o fato de que é fruto e constituinte de uma cultura urbana. A despeito dessa percepção generalizada, nem sempre os historiadores do esporte aprofundaram tal debate dialogando com o ferramental de áreas do conhecimento que se debruçam mais detidamente sobre os temas relativos ao espaço, entre as quais a geografia e o urbanismo, campos que, por sua vez, não obstante algumas valorosas contribuições, nem sempre dedicam maior interesse ao papel desempenhado pelas iniciativas esportivas.

Este dossiê pretende publicar artigos que aprofundem ou tenham assumidamente em conta o debate acerca das relações entre esporte e espaço, relativos a qualquer recorte temporal e espacial, bem como abordagem metodológica e conceitual. Entre outros assuntos, pretende-se receber contribuições que explicitamente considerem como tema central ou inspirador da investigação:

– As contribuições da Geografia para a História do Esporte

– As contribuições do Urbanismo para a História do Esporte

– As contribuições da Arqueologia para a História do Esporte

– Reflexões sobre a articulação entre iniciativas esportivas e produção do espaço

– Reflexões sobre a profunda relação entre o esporte e a experiência citadina

– Reflexões sobre a espacialização das experiências esportivas

Estamos considerando a ideia de esporte em seu sentido lato, isso é, “práticas corporais institucionalizadas”, interessando também, além de todas as formas de organização do campo esportivo, reflexões sobre a dança, as lutas, as manifestações populares, os diversos tipos de ginástica, entre outros. Da mesma forma, dado o escopo da Recorde, aceitamos contribuições relativas às diversas práticas de diversão.

As submissões devem ser enviadas para o email: revistarecorde@gmail.com.

Data limite para submissões: até 30 de junho de 2023

Divulgação dos aceites: até 30 de agosto de 2023

Publicação do dossiêdezembro de 2023

Sobre a revista: No ar desde 2008, Recorde é a única revista latino-americana dedicada à história do esporte. Atualmente está classificada no Qualis de dez áreas de conhecimento. Endereço: https://revistas.ufrj.br/index.php/Recorde

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Abaixo, como informado no início, segue o sumário da edição atual. Que venham mais 30 números e 15 anos/volumes.

v. 15, n. 2 (2022)

Sumário

Artigos

Luciano Arancibia Agüero
César Teixeira Castilho, Elcio Loureiro Cornelsen, Gustavo Cerqueira Guimarães
Sarah Teixeira Soutto Mayor, Georgino Jorge de Souza Neto, Silvio Ricardo da Silva
Felipe Tavares Paes Lopes, Camila Caldeira Nunes Dias, Claudio Luís de Camargo Penteado
Lizandra de Souza Lima, Coriolano P. da Rocha Junior
Everton de Albuquerque Cavalcanti, Vinícius Machado de Oliveira, Juliano de Souza, André Mendes Capraro
Marina de Mattos Dantas
Helcio Hebert Neto
Thayla Rebouças de Oliveira, Eduardo Vinícius Mota e Silva

Resenhas

Douglas Booth
Douglas Booth

[A maior parte deste post foi publicada originalmente no Blog História(s) do Sport.]

E aí, o jogo eletrônico é ou não esporte? A fala da ministra Ana Moser, romantismo versus Realidade

Em uma das primeiras entrevistas como ministra do esporte, dada no dia 10 de janeiro de 2023, Ana Moser (ex-atleta de vôlei) disse que os esportes eletrônicos fazem parte de uma agenda de entretenimento e que não podem ser considerados esporte. A ministra, ainda comparou os atletas de e-sport com a cantora Ivete Sangalo, que também se preparava (treina) para show, mas que nem por isso seria considerada atleta da música. O comentário de Ana Moser, gerou um grande rebuliço nas redes sociais. De um lado aqueles que defendem tal manifestação como esporte de outro aqueles que não. Em determinados momentos, percebi que o debate saíra da esfera de políticas públicas e ideias para ser de política partidária. Lamentável. Mas não me estenderei aqui nessa disputa.

Pelo que venho construindo, principalmente aqui no Blog BELA, é claro que minha posição é de entender como manifestação esportiva o jogo eletrônico. Todavia, tal episódio contribui para articular, ampliar e repensar pontos de vista. Dessa forma, dialogarei com um apanhado de argumentos utilizados tanto por aqueles não quanto por aqueles que consideram que tal manifestação seja esportiva.

Comecemos pelos apontamentos que não acreditam que o game possa ser um esporte. Para evitar rodeios, serei breve.

Ele é entretenimento. Ora, a história dos esportes nos mostra que sua legitimação passa pelo processo de espetacularização. Bracht (2003) já levantava que o profissionalismo nos esportes estava diretamente atrelado às possibilidades de exploração comercial destes. E convenhamos, que a grosso modo, se não há público também não há a possibilidade de manter patrocínios e estruturas para que um esporte seja praticado profissionalmente. Assim, em alguma medida, todo esporte praticado profissionalmente se torna entretenimento para um grupo de pessoas.

Ausência de federações, Fortes (2021) nos indica casos como UFC que se apresentam como instituições praticamente paralelas a própria manifestação e que por também não possuem tais entidades reconhecidas mundialmente ou (quando existentes) não obedecem a suas diretrizes, mas que nem por isso perdem o status de esporte.

Ausência de movimentos, tal questão já foi tratada neste mesmo blog, no texto “Jogo eletrônico, E-sport ou apenas jogo”. Mas façamos uma ligeira recapitulação. Ao contrário do que comumente se pensa, é necessária grande habilidade motora para executar as ações dentro do jogo de computador. De fato, não são utilizados grandes grupos musculares, como usualmente visto na maioria dos esportes como vôlei, esgrima e outros. Todavia, a habilidade óculo-manual sem dúvida é de fator decisivo para diferenciar um profissional de um jogador casual. Assim sendo, o controle aprimorado das ações motoras do corpo, faz sim parte do esporte eletrônico. Além do mais já existem esportes que se utilizam desse controle, como por exemplo o tiro esportivo. Se ainda sim, isso não ser considerado “movimento humano” somasse os dizeres de Melo (2010) sobre o que pode ser entendido como esporte.

A não representatividade nas Olímpiadas, este sinceramente beira entre os piores. Sou capaz de concordar que estar nas olímpiadas significa muito para os praticantes de uma determinada modalidade. Contudo, sua ausência não influencia em seu caráter de esporte. Como sabido, existem diversos outros fatores para a inclusão de uma manifestação no calendário olímpico, e mesmo que alguns contemplem a todos não são inseridos, por motivos outros. Pois, se tomarmos a ferro e fogo a necessidade da representação nas olímpiadas, certamente teremos que aceitar, por exemplo, que futsal, futebol de areia, futebol americano, beisebol não são esportes.

Voltemos agora nossos olhares para o que dizem os adeptos ao esporte eletrônico. Mantendo o esforço de enxergar fragilidades nos discursos apresentados, tentando fugir de determinismos ou senso comum, e contrasta-los com a realidade.

Em várias postagens sobre o tema nas redes sociais, percebi a tentativa de contrapor a estes (argumentos alhures apresentados) e outros com mensagens quase que histéricas deixando com que a paixão falasse pela razão, o que não pode ser entendido como o caminho mais correto para o debate. A respeito disso, caminhões de fotos comparando o público obtido em uma partida de Counter Strike (CS) e partidas de vôlei foram postadas nas redes sociais, por entusiastas. Contudo, é necessário frisar, com o perdão da palavra, que neste caso trata-se de comparação esdrúxula. Uma vez que utilizaram fotos de uma final (ou etapas finais) do campeonato mundial de maior relevância para o CS e de um jogo de meio de campeonato (muitas vezes de equipes que nadam disputavam) de liga de voleibol feminino. Ou seja, não se trata de uma aferição realista, eram apenas tentativas de atingir a ministra.

Outro ponto de aparente confusão entre os entusiastas é o entendimento que o que os profissionais jogam pode ser considerado esporte e o que nós (pobres mortais) jogamos é “apenas” jogo. O argumento principal gira em torno do treinamento sistemático (o que de fato pode ser considerado um aspecto importante, mas de longe o único nem determinante). Contudo, os entusiastas se esquecem (ou não sabem) que o alto rendimento é apenas uma das dimensões do esporte. Na Educação Física, há algum tempo, se trabalha com 3 dimensões: recreativo, educacional e alto rendimento. Dessa maneira, defender o esporte eletrônico apenas do ponto de vista da alta performance, parece não engrossar o coro sobre a legitimação.

O apontamento de ações em países desenvolvidos em relação ao esporte eletrônico, como uma ação recente da França, apesar de válido pois é mirando em ações já consolidadas que podemos caminhar para frente, se tornam também ausentes de análise de conjuntura atual dos diferentes países. Parece-me claro, que estamos passando por um processo de reconstrução de políticas públicas, desta forma é preciso assumir que não estamos em pé de igualdade com outros países (principalmente europeus) para comparar diretamente as ações referentes ao tema.

É preciso também relembrar que há poucos anos atrás, houve certa discussão no meio quanto a regulamentação dos atletas, sendo que muitos profissionais e equipes ficaram contra, pois a entrada do governo traria alguns entraves. Essa questão transitou no senado e era pauta da PLS383/2017, todavia foi arquivada. A não unanimidade entre os envolvidos, pelo visto, foi esquecida por agora.

Surgiram também nas redes sociais comparações com o antigo governo, citando o exemplo da redução de impostos na importação de produtos relacionados aos jogos (o que englobava acessórios e máquinas de videogame). Nesse ponto existem fatores que carecem de uma observação mais próxima. É inegável que o decréscimo de impostos em bens de consumo pode fomentar a sua compra, caso isso seja repassado ao consumidor final. E que isso de certa forma refletirá no acesso ao esporte eletrônico por mais pessoas (mesmo que de forma ínfima, como acredito ter acontecido). Contudo, é necessário entender que os esportes eletrônicos representam uma pequena parcela na indústria dos games. Isso, de pronto, já afirma que os investimentos não foram feitos para o esporte em si, mas sim para a indústria dos jogos eletrônicos.

Demos um exemplo, a fim de que meu ponto de vista fique mais claro. Seria o mesmo que zerar os impostos sobre chuteiras e afirmar que tal se tratava de um investimento no futebol feminino. Ora, isso pode gerar algum impacto positivo no acesso ao material da atividade, todavia os entraves encontrados para quem pretende praticar o esporte são muito mais diversos que unicamente a chuteira. Dessa forma, apesar de ser um ponto que possa ajudar é irresponsável dizer que tal ação tinha como objetivo o fomento da prática de futebol por mulheres.

Além disso, basta percorrer as praças das cidades (principalmente do interior) para perceber que há até entre os esportes já consolidados grande diferença de aporte público para sua prática. Quadras de futsal vemos com certa frequência, todavia cestas de basquete ou redes para vôlei possuem um número bem menor. Visto essa realidade, não é factível que acreditemos que o governo despeje recursos sobre uma manifestação que ainda luta para se consolidar no Brasil, para não me prolongar e fugir ao tema, aqui encerro este parágrafo.

De fato, a ministra parece ter fechado as portas para os investimentos no esporte eletrônico, o que, justificavelmente, causa rebuliço entre os adeptos da área. É sabido por todos, ou pela maioria, que o Brasil carece de aportes do Estado em vários setores e isso sugere a escolha de uns em detrimento de outros. Todavia, logo no início dos trabalhos uma fala tão taxativa, baseada não em fatos, mas em opinião pessoal causa uma instabilidade entre os representantes de uma área que muito cresce a nível nacional e mundial e o governo.

Por fim, mais uma vez afirmo que tal manifestação discutida trata-se sim, de um esporte. E que ações governamentais seriam bem-vindas para fomentar sua prática. Como por exemplo, o direito a passaporte para atletas, uma legislação específica, o aumento de incentivo a projetos educacionais e inclusão. Todavia, essa é uma realidade ainda distante até mesmo dos esportes hegemônicos nas cidades do interior do país, que carecem de grande investimento. Então, o que nos leva a crer que a aceitação desta prática como esporte faria com que ações públicas brotassem?

Continuemos a jogar amigos.

REFERÊNCIAS

BRACHT, Valter. Sociologia crítica do esporte: uma introdução. 3. ed. Ijuí: Unijuí, 2003.

FORTES, Rafael. Entrevista com João Malaia. Recorde: revista de história do esporte, Rio de Janeiro, v. 12,n. 2,p. 1-22,jul.-dez. 2021.

MELO, Victor Andrade de. Apontamentos para uma história comparada do esporte: um modelo heurístico. Revista Brasileira de Educação Física e Esporte,  São Paulo ,  v. 24, n. 1, p. 107-120,  Mar.  2010 .  Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1807-55092010000100010&lng=en&nrm=iso&gt;. Acesso em: 05  fev.  2023.