A surf music dos anos 1960 e a exaltação da Califórnia (2)

Este texto é a continuação de “A surf music dos anos 1960 e a exaltação da Califórnia (1)“. Hoje abordo o conteúdo (letras) de algumas canções do gênero e de que maneira elas representaram o estado da Costa Oeste dos Estados Unidos. Começo pelo grupo que ficou mais famoso e que é, para muita gente, sinônimo de surf music: The Beach Boys. Segundo o site oficial, “The Beach Boys transcenderam sua música e acabaram por representar a cultura californiana“. O grupo foi “fundado em Hawthorne, Califórnia, em 1961” e “lançou seu primeiro disco, Surfin’ Safari“, no ano seguinte. Das 12 faixas, duas têm “surfe” no título: Surfin’ Safari e Surfin’. O álbum Surfer Girl (1963), além da faixa-título, traz Catch a Wave, The Surfer Moon, South Bay Surfer, Rocking Surfer, Hawaii e Surfers Rule.

Capa do disco Surfer Girl, lançado em 1963. Fonte: Site oficial dos Beach Boys.

Também de 1963 é o disco Surfin’ USA, cuja primeira faixa, com o mesmo título, é possivelmente a música mais conhecida do grupo no Brasil e bastante ligada à ideia de surf music. Nos Estados Unidos, essas músicas são associadas não apenas ao surfe, mas também à Califórnia e à construção de representações (frequentemente estereotipadas) sobre este estado e sua população, conforme abordei no texto anterior. Um dos trechos que citei do site da banda reafirma essa ideia. Surfin’ U.S.A. estabelece os termos já na primeira estrofe, que diz mais ou menos o seguinte: “se todos nos EUA / tivessem um mar / estariam surfando / como se faz na Califórnia”. Canções como esta e Surfin’ Safari listam picos, praias, cidades e condados famosos da faixa litorânea californiana, particularmente do sul: La Jolla, Rincon, Pacific Palisades, Swami’s, Redondo Beach, San Onofre, Del Mar, Ventura County, Santa Cruz, Trestles, Manhattan Beach, Laguna Beach etc.

Em California Girls, a letra diz, referindo-se às garotas dos outros estados dos EUA: “Gostaria que todas elas / pudessem ser garotas da Califórnia” (não confundir com California Gurls, de Katy Perry, que, aliás, tem algumas representações semelhantes). O refrão de  Surf City, gravada por Jan and Dean, já no início sugere que a boa é viajar para a surf city, pois lá existem “duas garotas para cada garoto”. Adiante, repete de outras formas esta contabilidade (“Vamos para Surf City / porque são duas pra um”) e diz que “tudo que você precisa fazer / é piscar o olho”. Nela e em Surfer Girl (Beach Boys), o eu-lírico é um homem jovem que tem um carro e o usa, respectivamente, para se deslocar até a surf city ou para levar a surfista amada “aonde quer que eu vá”.

May (2002) destaca os automóveis e a infraestrutura relacionada a eles (estacionamentos, estradas e muito, muito asfalto e cimento) como traços muito relevantes e característicos da cultura do Sul da Califórnia. O mundaréu de estereótipos presentes nas letras ao mesmo tempo expressa condições da época e ajuda a construí-las e reforçá-las. Há questões de gênero e heteronormatividade, mas também de masculinidade e feminilidade que podem ser discutidas nestas músicas. Existe também a atribuição de certos comportamentos e características às garotas californianas – subentendida está a noção de que são brancas, vivem no litoral e são preferencialmente louras (e usam biquínis e são bronzeadas), além de jovens.

Trata-se de um universo não apenas idealizado (afinal, estamos tratando de ficção), mas tomado como se correspondesse ao todo da Califórnia. Isso significa uma construção idílica em muitos aspectos contrastante com outros cenários localizados a poucos quilômetros do litoral (mas não em todos os aspectos: o interesse/necessidade/cultura de automóveis faz parte de diferentes subculturas do sul californiano, inclusive de segmentos, grupos e etnias da classe trabalhadora). Por exemplo, como discute May (2002), nos protestos de caráter racial de 1965 em Watts, localizado, em linha reta, a aproximadamente 20 quilômetros de Manhattan Beach e 35 da Disneylândia. (Uma coleção de fotos do jornal Los Angeles Times sobre os protestos está disponível aqui).

Do it Again (The Beach Boys), de 1968, elogia a beleza do litoral, as garotas com a pele bronzeada, as ondas e picos surfados e os namoros na areia à luz do luar. Letras como essa construíam o mito do lugar de sonho para passar as férias, alimentando o desejo dos que nunca havia estado lá, e atiçando as lembranças de quem já estivera –  como é o caso do eu lírico de Do it Again. Em Rock’n’roll to the Rescue, lançada em 1986, o eu lírico-se recorda do rock das festas do passado quando vê “algumas garotas do Oeste de Los Angeles” (ou seja, do litoral). No vídeo (abaixo) estão as garotas, os carros, as pranchas de surfe e a praia, emulando no presente dos anos 1980 o passado idealizado de duas décadas antes.

Rock ‘n’ Roll to the Rescue foi composta e gravada para Made in USA (1986), um disco duplo com 25 faixas composto, na maioria, por regravações e reproduções de gravações originais de canções da carreira dos Beach Boys. A coletânea inclui uma cover de California Dreamin’, sucesso de The Mamas and the Papas em meados dos anos sessenta, cuja letra fala de um dia cinzento de muito frio que faz o eu-lírico sonhar com a Califórnia: estaria “seguro e quente / se estivesse em LA”. Abaixo, um vídeo dela tocada por The Mamas and the Papas, que pode agradar em especial quem gosta de cortes e penteados:

Evidentemente, as referências à Califórnia nas músicas e no ideário estadunidense são múltiplas, não se limitando aos assuntos que abordei e à surf music. Ainda nos anos 1960, e também nas décadas seguintes, há associações ao mar, às estradas, ao prazer, ao lazer, ao céu, às férias, à moda e ao estilo de se vestir, aos cortes e estilos de cabelo, à liberdade, à juventude, à expansão da mente, às artes, ao acolhimento de loucos, desajustados e rejeitados, entre outras. No caso das estradas, isto inclui duas das mais famosas do país: a Pacific Coast Highway (101), que fica inteira no estado, e a Route 66, que atravessa vários estados e termina no píer de Santa Mônica. Ventura Highway, da banda America, é inspirada na estrada homônima (agradeço a Eduardo de Oliveira por me indicar, anos atrás, essa música, que eu desconhecia).

Um clássico que evidencia o alcance internacional das representações do estado é  Going to California, da banda britânica Led Zeppelin. O eu-lírico diz: “Alguém me disse que lá existe uma garota / com amor nos olhos e flores no cabelo”. Essa canção é de 1971, e as representações já incluem referências que não apareciam no início e meados dos anos 1960, como alguns símbolos da contracultura e do movimento hippie. Ainda no caso de outros países, Thompson (2011) aborda a recepção e adaptação das referências oriundas da Califórnia na África do Sul, especialmente na cultura do surfe que se formou naquele país entre o fim dos anos 1950 e o início dos 1970.

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Um dos limites dessa minha descrição e breve análise é não entrar em aspectos propriamente musicais (ritmo, harmonia, instrumentos etc.) que são característica central deste tipo de fonte e que devem ser dominados pelo historiador que a eles se dedique. As músicas são fontes complementares em minhas pesquisas e, justamente por pouco tratar delas nos textos acadêmicos que produzo, acredito que estes espaços em blogues de divulgação científica sejam uma forma de falar delas, ainda que sem o aprofundamento dos aspectos que abordei no início deste parágrafo. Para uma discussão mais aprofundada, ver Cooley (2014).

[Continua…]

Para saber mais

COOLEY, Timothy J. Surfing About Music. Berkeley: University of California Press, 2014.

GEORGE, Sam. California: Land of Sun, Sand and Surf. In: CARROLL, Nick (ed.). The Next Wave: The World of Surfing. New York: Abbeville Press Publishers, 1991. p. 58-81.

LADERMAN, Scott. Empire In Waves: A Political History of Surfing. Berkeley: University of California Press, 2014. (Especialmente o capítulo 2)

MAY, Kirse Granat. Golden State, Golden Youth: The California Image in Popular Culture, 1955-1966. Chapel Hill, London: The University of North Carolina Press, 2002.

ROSZAK, Theodore. A contracultura: reflexões sobre a sociedade tecnocrática e a oposição juvenil. Petrópolis: Vozes, 1972.

THOMPSON, Glen.  California Dreaming: Surfing Culture, the Sixties and the Displacement of Identify in South Africa. Paper for the 23rd Biennial Conference of the Southern African Historical Sociedy, University of KwaZulu-Natal, Howard College Campus, Durban, 27-29 June 2011.

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