Recentemente, desenvolvemos um estudo sobre 30 obras do pintor expressionista alemão August Macke (1887-1914) que apresentam imagens associadas ao lazer e ao entretenimento, selecionadas no acervo digital disponível no portal Kunst für Alle (Arte para Todos) (CORNELSEN, 2021; CORNELSEN, 2022). Em nosso procedimento analítico, adotamos postura semelhante àquela proposta por Melo (2009, p. 22) ao estudar representações artísticas do esporte nas artes plásticas, ou seja, a intenção de partir das imagens: “Isto é, não se tratou de buscar obras que ilustrassem o que as fontes documentais informavam sobre os temas tratados, mas sim partir do que as imagens informavam, não só no que se refere ao tema, como também naquilo que dizia respeito à forma e ao contexto de representação”.
Dentre as atividades de lazer, presentes como tema em quadros e aquarelas pintados por August Macke entre 1911 e 1914, destacam-se as visitas a locais de entretenimento. Dentre eles, a seguir, analisaremos os seguintes, referentes ao mundo do circo e ao jardim zoológico: Circuswelt (1911; Mundo circense), Seiltänzerin (1913; Equilibrista na corda bamba), Cirkus (1913; Circo), Cirkusbild I – Kunstreiterin (1911; Imagem circense I – amazona), Kleiner Zoologischer Garten in Braun und Gelb (1912; Pequeno jardim zoológico em marrom e amarelo), e Zoologischer Garten (1912; Jardim Zoológico).
Iniciaremos nossa análise de quadros e aquarelas que apresentam imagens do mundo circense. O primeiro deles é, justamente, Circuswelt (1911; Mundo circense):
Circuswelt
(1911; Mundo circense)
Material: óleo sobre tela, 54,0 x 39,5 cm
(AGK-IMAGES, s/d)
(https://www.akg-images.de/archive/Circuswelt-I-2UMEBMBVYLWBN.html )
Antes de apontarmos os aspectos e detalhes que compõem a referida obra, cabe tecermos algumas conjecturas em torno do próprio tema: o mundo circense. De acordo com Coelho & Minatel (2011, p, 204), “o circo é um objeto social que tem um valor historicamente construído e que, todo tempo, busca uma identidade frente as mais diversas pressões sociais”. Estudiosos apontam suas raízes históricas na China, na Índia, na Grécia Antiga e em Roma. Segundo Torres (1998, p. 16), “o circo, como nós o conhecemos – um picadeiro, lonas, mastros, trapézios, desfiles, animais exóticos e suas jaulas, ‘isso para não citar a pipoca e o algodão doce’ –, é a forma moderna de antiqüíssimos entretenimentos de diversos povos e culturas”.
Sem dúvida, em termos históricos, o circo romano – com o Circus Maximus (séc. VI a.E.C.) – parece ser aquele que reuniria mais elementos e, ao mesmo tempo, cunharia o próprio termo “circo”, originado do grego kírkos (κρίκος) e do latim “circus” – grafado em alemão como Circus, Cirkus ou Zirkus –, que significa “circunferência” e alude, originalmente, tanto ao espaço da arena romana em que eram disputadas corridas de carruagens e travadas lutas entre gladiadores (COELHO & MINATEL, 2011, p. 207), quanto ao picadeiro, ou seja, à ala central do circo em que os artistas se apresentavam ou em que se realizavam exercícios de equitação. Posteriormente, o termo acabaria por assumir um significado mais amplo, como companhia artística que englobaria uma série de especialidades para compor o espetáculo, dentre elas o malabarismo, a acrobacia, o equilibrismo, o contorcionismo, o ilusionismo, o adestramento de animais, a adaptação de cenas teatrais e musicais, e a performance do riso e da alegria com a atuação de palhaços, figuras centrais no universo circense.
Por sua vez, desde a Antiguidade, o mundo circense passaria por transformações significativas. A maior delas, talvez, tenha se dado nas últimas décadas do século XVIII, conforme aponta Torres (1998, p. 16), em que um formato “clássico” de circo se estabeleceria:
Mas o circo como espetáculo pago, com picadeiro onde se apresentam números de equilíbrio a cavalo e habilidades diversas, é muito recente. Foi criado pelo suboficial inglês e perito cavaleiro Philip Astley (1742-1814), em 1770 para alguns, 1776 ou 1777 para outros historiadores. Ele deu a estrutura que o circo tem até hoje.
Teria sido, pois, Astley aquele que agregou às exibições equestres no Royal Amphitheatre of Arts (Anfiteatro Real das Artes) também exibições de acrobacia, de malabarismo, e de entretenimento do público através da performance de músicos e de palhaços. Entretanto, como nos lembra Henriques (2006, p. 2), “[c]onsiderando o ‘movimento circo’ como uma especialidade das artes onde o corpo é o protagonista, onde os artistas se expressam através de suas ações e gestos ensaiados, é possível considerar que a expressão humana ali representada antecede os próprios conceitos de circo ou artes do circo”.
Ainda sobre o advento do circo moderno, Emilia Silva (2010, p. 125) assevera que
[o] espetáculo artístico, voltado para o entretenimento que passou a ser denominado circo, surgiu da junção dos diversos artistas presentes em Londres no final do século XVIII com cavaleiros egressos da cavalaria real inglesa. Esse modo de organização de espetáculo, reunindo teatro, acrobacias, danças, música, bonecos e animais, entre outros, fez tanto sucesso que diversos grupos montaram seus espetáculos circenses e em passo acelerado iniciaram turnês por diversos países do mundo, a partir de 1762.
Outro aspecto relevante a se considerar é o próprio espaço do circo e a interação que se estabelece entre artistas e público na era moderna. De acordo com Ávila (2008, p. 17),
[a] atividade circense, como uma linguagem artística articulada na diferenciação espacial e construída socialmente, forma comunidades momentâneas em seus espetáculos, quase inconscientemente, que duram o tempo de sua apresentação ou o tempo que as pessoas se envolveram. Isso acontece tanto com os circos tradicionais que se apresentam dentro de suas lonas como com os grupos artísticos móveis que trabalham em lugares alternativos ou em teatros.
Posto isso, devemos considerar, ainda, os pressupostos para o advento e desenvolvimento do universo circense no contexto alemão. Embora já difundido desde o final do século XVIII, sobretudo pela atuação de companhias itinerantes familiares – Sarrasani, Renz, Busch etc., que formavam autênticas “dinastias circenses” (ROCHO, 2012, p. 577) –, o circo vivenciou seu florescimento por volta de 1900. Não é de estranhar, portanto, que ele tenha recebido atenção especial nas artes plásticas por pintores como o alemão August Macke e o russo Marc Chagall, um dos grandes nomes da pintura universal, que também expôs suas obras em Berlim e em Paris na década de 1910. O pioneiro do universo circense na Alemanha teria sido Ernst Jakob Renz (1815-1892), que teria fundado o Circus Renz em meados do século XIX e seria seguido pelo Circus Busch, fundado por Paul Vinzenz Theodor Busch (1850-1927) em 1884, com apresentações em várias cidades, entre elas, Berlim e Hamburgo, mas também na Áustria, especificamente em Viena.
Retomemos o quadro Circuswelt (1911; Mundo circense). Por sua datação, foi pintado em um período no qual o circo estava no auge, na Alemanha. Ao tomá-lo por tema em sua pintura, August Macke possibilita vê-lo enquanto fenômeno a partir de uma determinada perspectiva, que tem a ver tanto com o estilo do pintor – de transição entre o Impressionismo e o Expressionismo –, quanto com a seleção de elementos que o expressem. Circuswelt é um excelente exemplo disso, pois apresenta quatro grupos distintos: palhaços, acrobatas, animais (pássaros e cão) e público. O maior destaque recai sobre os palhaços, que ocupam posições distintas na tela e que estão representados em proporções diferentes, o que empresta certo senso de profundidade à cena. O mastro central em vermelho parece dividir a tela em dois quadrantes com níveis distintos: o quadrante esquerdo exibe o público na parte inferior da tela e, na parte superior, um músico segurando um bumbo, trajado e maquiado como palhaço, um cão, aparentemente, da raça poodle, e dois pássaros exóticos, aparentemente uma cacatua e uma arara; o quadrante direito exibe abaixo um palhaço com vestes e maquiagem distintas das do músico, e no plano elevado um casal de prováveis acrobatas, um homem musculoso trajando apenas uma sunga azul com contornos amarelos e uma mulher trajando um maiô amarelo. Centralizados entre os quadrantes, posicionados no mastro, figuram dois palhaços: o primeiro deles, trajando um terno marrom e segurando uma cartola, está entrelaçado ao mastro com o braço direito e as pernas, e parece ser aquele que reverencia o público e apresenta as atrações do circo; em proporções menores, o segundo está posicionado na parte superior do mastro, sentado em uma haste ou prancha e, pelo efeito de profundidade, permite a visualização de menos detalhes, como a calça amarela, a camisa verde e um gorro vermelho.
A descrição do quadro Circuswelt nos permite algumas conjecturas em relação ao lazer e ao entretenimento. Primeiramente, nota-se que August Macke intentou trazer duas dimensões do mundo circense: por um lado, a dimensão do espetáculo e, por outro, a dimensão do público, mesmo que este ganhe destaque menor em sua composição. A perspectiva do próprio quadro parece se posicionar mais próximo do que seria a visão da plateia para a cena que se descortina. Ao todo, seis figuras humanas compõem o público: quatro homens e duas mulheres, todos trajando vestes sociais, evidenciadas pelo predomínio de chapéus com arranjos para as mulheres e de chapéus coco ou palheta, para os homens. O olhar deles se volta para cima, contemplando o espetáculo, o que reforça o sentido de que público e artistas estão em níveis distintos, o que nos permite intuir que se trata de apresentação em um palco, e não em um picadeiro, argumento que pode ser justificado pela imagem do palhaço no quadrante direito, em primeiro plano, que desce os degraus de uma escada com corrimão e saúda o público. Outra escada parece conduzir ao nível em que se encontram os trapezistas, no quadrante direito, e o músico e os animais, no quadrante esquerdo. Há também uma cortina, à direita da trapezista, e um pano de fundo atrás do palhaço que está no topo do mastro, aparentemente, representando uma cena da natureza, com água, terra e céu. Bem ao estilo de Macke, o quadro é rico em cores e contrastes, com predominância de cores quentes – vermelho, laranja e amarelo, e em formas curvilíneas.
Antes de passarmos para a análise do próximo quadro, devemos ressaltar um aspecto: a composição do espetáculo circense retratada pictoricamente em Circuswelt. Conforme mencionado anteriormente, fora o público, três grupos distintos se destacam: palhaços, acrobatas e animais (pássaros e cão). Nota-se que os palhaços recebem maior destaque no quadro. Além de serem as figuras mais numerosas, são também aquelas que se distinguem entre si, como músico, como apresentador do espetáculo, como equilibrista e como clown propriamente dito, que permite representações de aparente estupidez e de astúcia que fazem o público rir. O riso e a alegria, pois, parecem dominantes no mundo circense, conforme representado por August Macke em sua pintura. Além disso, algo típico na atuação performática de palhaços é o uso de instrumentos musicais ou a execução de pequenas atividades artísticas que são integradas a uma trama cômica. Todos esses elementos encontram-se presentes em Circuswelt.
Além disso, outro elemento representado em Circuswelt, o mastro também era utilizado para acrobacias, bem como as barras horizontais, originárias do esporte. Já a atividade de adestramento como arte circense – representado no quadro pela cacatua, pela arara e pelo poodle – é variada, podendo englobar animais selvagens, como leões, tigres, leopardos, ursos, zebras e elefantes, ou também cavalos e pôneis, ou animais de menor porte, como pássaros, cães, gatos etc., e, em geral, estes são integrados a números cômicos.
Por sua vez, o casal de acrobatas não é representado performaticamente em Circuswelt, na execução de sua arte, mas postados. Poderia se especular que se trata de acrobatas que se apresentam juntos, em que um deles se equilibra com as mãos nas mãos, na cabeça ou em outra parte do corpo do outro, enquanto executa movimentos específicos.
Passemos, agora, ao segundo exemplo da presença do tema do mundo circense na pintura de August Macke, o quadro Seiltänzerin (1913; Equilibrista na corda bamba):
Seiltänzerin
(1913; Equilibrista na corda bamba)
Material: óleo sobre tela, 46,0 x 35,0 cm
(KUNST FÜR ALLE, s/d)
(https://www.kunst-fuer-alle.de/deutsch/kunst/kuenstler/kunstdruck/august-macke/345/134/556931/seiltaenzerin/index.htm )
Se comparado a Circuswelt, que apresenta o tema do mundo circense, o quadro Seiltänzerin, tanto visualmente quanto em relação ao paratexto principal, ou seja, o título, delimita o tema ao enfocar uma determinada arte circense: o equilibrismo, realizado como caminhada na corda bamba. Conforme se pode observar, na parte central da tela há a presença de uma equilibrista, usando maiô na cor verde, que caminha sobre uma corda de arame esticada no alto e utiliza como auxílio para equilibrar-se uma longa barra.
Para além da figura tema do quadro, alguns detalhes chamam à atenção em Seiltänzerin. Um deles é a presença do público, que é retratado em pé e de costas ao contemplar a performance da equilibrista. Desta feita, as vestes não parecem ser tão formais quanto em relação ao público representado em Circuswelt. Talvez, isso se deva à distinção entre os espaços: enquanto, em Circuswelt, há a representação do universo circense no palco, em um recinto fechado, em Seiltänzerin evidencia-se que se trata de uma apresentação em um circo, com suas traves de sustentação e com a lona, que está erguida ao fundo e permite a visualização de casas e telhados coloridos na parte externa. Em termos estéticos, predominam os traços retilíneos – mastros, postes de sustentação, barra de equilíbrio, casas e telhados etc. – e predomina certa luminosidade, pela escolha de cores quentes – vermelho, laranja e amarelo, no centro e no fundo da tela, e de cores frias – azul, violeta e violeta azulado, no primeiro plano, em que se encontra o público. Mais uma vez, August Macke ressalta, imageticamente, a associação entre espetáculo e público, entre arte circense e espectadores que desfrutam de seus momentos de lazer e buscam por entretenimento.
O terceiro exemplo da representação pictórica do tema do circo na pintura de August Macke é Cirkus (1913; Circo):
Cirkus
(1913; Circo)
Material: óleo sobre tela, 47,0 x 63,5 cm
(KUNST FÜR ALLE, s/d)
(https://www.kunst-fuer-alle.de/deutsch/kunst/kuenstler/kunstdruck/august-macke/345/287/144192/zirkus/index.htm )
Mais uma vez, temos uma cena circense em um espaço de picadeiro. Diferindo dos dois exemplos anteriores, não há a presença de público. Talvez, seja a representação de uma cena de exercício antes do espetáculo, com fim trágico: o acidente de uma amazona ao cair de sua montaria. Desde a segunda metade do século XVIII, a equitação artística ganhou espaço dentre as atrações circenses. Uma de suas modalidades é praticada por uma figura feminina, conforme a representada no quadro, que se exibe equilibrando-se em diversas posições sobre o cavalo em movimento circular.
Em Cirkus, há seis figuras humanas, sendo que quatro delas se destacam no centro do quadro: três figuras masculinas, que exibem trajes diversos, podendo ser malabaristas ou equilibristas, ou mesmo auxiliares do circo, que carregam a amazona, a qual parece sangrar pela boca após sofrer a queda do belo cavalo branco com cela vermelha, que é conduzido para fora da lona por outra figura; a quinta figura é a de um homem em primeiro plano, que está sentado de costas, podendo ser o diretor do circo, como se lamentasse o ocorrido.
A composição espacial da cena também nos permite certas inferências: no picadeiro, há uma cadeira, que poderia ser a do diretor ao observar o exercício de equitação, mas que está vazia, pois este está sentado na beirada do picadeiro; as lonas sustentadas por quatro traves, duas a duas cruzadas, parecem estar arreadas, o que legitima a impressão de que se trate de exercício antes do espetáculo propriamente dito, bem como pela ausência de público. Em termos estéticos, predominam traços curvilíneos – lonas, picadeiro, cavalo, figuras humanas etc., de modo semelhante ao quadro Circuswelt, sobre traços retilíneos – cadeira, traves de sustentação, e as cores dominantes são as quentes – vermelho, laranja e amarelo, o que empresta luminosidade à cena.
Por sua vez, o quarto e último exemplo da presença temática do universo circense como representação do lazer e do entretenimento na pintura de August Macke é Cirkusbild I – Kunstreiterin (1911; Imagem circense I – amazona):
Cirkusbild I – Kunstreiterin
(1911; Imagem circense I – amazona)
Material: óleo sobre papel e tela, 47,0 x 63,0 cm
(KUNST FÜR ALLE, s/d)
(https://www.kunst-fuer-alle.de/deutsch/kunst/kuenstler/kunstdruck/august-macke/345/59/561405/circusbild-i:-kunstreiterin/index.htm )
A obra Cirkusbild I – Kunstreiterin, pintada dois anos antes de Cirkus, por seu título, indica que se trata de uma primeira imagem temática de um ciclo de obras dedicadas ao universo circense. Se no quadro de 1913 há um sentido trágico e disfórico na representação pictórica da amazona que sofreu um acidente ao cair da montaria em um exercício de equitação e equilíbrio, no quadro de 2011, a amazona é representada em toda a sua exuberância, sentada em posição de equilíbrio sobre o cavalo, cruzando as pernas e segurando uma pequena vara para equilibro e comando, e trajando vestes típicas de bailarinas. O conjunto formado pelo cavalo e pela amazona domina o espaço no centro do quadro. Já o picadeiro e sua pequena murada determinam a separação entre o espetáculo e o público. Enquanto o cavalo e a amazona se movimentam dentro do picadeiro, sobre a murada, do lado esquerdo da tela e em primeiro plano, estão de pé duas figuras masculinas, uma delas parecendo ser um clown, de fraque verde, calça azul e calçado bege, e que segura nas mãos uma cartola vermelha amassada, e outro esguio, vestido com um collant verde e sunga cinza, e com calçados cinzas, como se fossem sapatilhas, podendo ser um equilibrista ou malabarista. Ambos parecem interagir com a amazona e com o público, retratado em primeiro plano, na parte inferior e esquerda da tela – três homens e duas mulheres em trajes sociais, – e também no fundo, do lado oposto, depois dos bastidores representados pelas cortinas verdes levantadas, da qual vem mais um clown, proporcionalmente pouco definido, com veste em cor marrom, talvez um macacão, e gorro vermelho. Mais uma figura é reconhecível na parte direita da tela: um homem vestido com camisa branca, fraque e calça preta, com gravata borboleta, parecendo ser um garçom, que segura uma bandeja na mão direita e caminha na lateral da murada do picadeiro, onde está a plateia.
Em Cirkusbild I – Kunstreiterin, a plateia requer atenção especial, pois sua representação se diferencia daquela das obras Circuswelt e, respectivamente, Seiltänzerin: pela primeira vez, o espaço circular do picadeiro e das cadeiras é visualmente apresentado, sendo que o público no primeiro plano é retratado como se interagisse, humoradamente, com as duas figuras masculinas postadas na murada do picadeiro, que as interpelam, enquanto o público numeroso no plano de fundo contempla a cena e indica que o circo está lotado. Em termos estéticos, predominam traços circulares e cores quentes – vermelho, laranja e amarelo, que emprestam luminosidade à cena de equitação e equilíbrio da amazona sobre o cavalo.
Portanto, esse conjunto composto por quatro obras de August Macke, que têm por tema o circo e seu universo, em seu caráter documental, nos permite refletir sobre essa prática no âmbito dos Estudos do Lazer. Como apontam Coelho & Minatel (2011, p. 204), “[d]esde quando emerge, o circo se constitui de práticas que concentram fortes conteúdos pedagógicos. No universo da Educação Física, o circo tem sido um tema pouco explorado, apesar de estar incluído nas manifestações da cultura corporal do movimento”.
Para além da representação pictórica do tema do universo circense na pintura de Auguste Macke, que nos permite reflexões sobre lazer e entretenimento, consideramos neste estudo também outro espaço: o do jardim zoológico. A primeira obra a ser analisada é Kleiner Zoologischer Garten in Braun und Gelb (1912; Pequeno jardim zoológico em marrom e amarelo):
Kleiner Zoologischer Garten in Braun und Gelb
(1912; Pequeno jardim zoológico em marrom e amarelo)
Material: óleo sobre tela, 47,0 x 96,0 cm
(KUST FÜR ALLE, s/d)
(https://www.kunst-fuer-alle.de/deutsch/kunst/kuenstler/kunstdruck/august-macke/345/227/132436/kleiner-zoologischer-garten-in-braun-und-gelb/index.htm )
De acordo com o artigo publicado pela Associação de Jardins Zoológicos (Verband der Zoologischer Gärten – VdZ), da Alemanha, assim como o circo, o zoológico possui uma história de alguns milênios, que remonta à Antiguidade, ao Egito ou à China. Os faraós veneravam alguns animais selvagens como divindades, que eram mantidos para fins militares ou de instrumentos de caça, dentre eles, antílopes, girafas e elefantes. Outro exemplo é o do imperador chinês Wen-Wang, que mantinha um “Parque do Saber” por volta de 1150 a.E.C., no qual viviam tigres, rinocerontes, antas e cobras gigantes (VERBAND, s/d).
Na Roma antiga, a manutenção de animais selvagens também desempenhava um papel importante, sobretudo para lutas e exibições em arenas, como o Circus Maximus, ou em anfiteatros em territórios conquistados ao Norte dos Alpes – em Colônia, Mainz, Trier e Xanten. Com a queda do Império Romano no séc. V, durante um longo período, tornou-se rara a presença de animais selvagens e exóticos na Europa. Somente na época das Cruzadas e das primeiras viagens empreendidas ao Oriente, nos séculos XII e XIII, é que animais selvagens voltariam a ser trazidos para a Europa e mantidos em zoológicos improvisados, em parques e jardins de palácios, para entretenimento da nobreza, e para demonstração de poder e riqueza. No âmbito do território alemão, o imperador Frederico II (1194-1250), soberano do Sacro Império Romano Germânico, ordenou a construção dos primeiros grandes zoológicos na Idade Média (VERBAND, s/d).
Certamente, já na Era Moderna, um zoológico real, construído no Palácio de Versalhes no período de reinado de Luis XIV (1628-1715), tornou-se modelo para criações de animais selvagens em outras cortes. Projetada pelo próprio rei, a Menagerie (palavra francesa para “zoológico”) apresentava no centro um pequeno palácio em estilo barroco, ao qual eram anexados sete cercados de animais diversos. Tal instalação serviu de modelo para a construção do Zoológico de Viena, localizado na área do Palácio de Schönbrunn, o mais antigo jardim zoológico do mundo ainda existente, inaugurado em 1752. Embora, inicialmente, a instalação destinasse ao interesse científico do Imperador Francisco I (1768-1835) e à recreação da família real austríaca, já em 1779 o Zoológico de Viena foi aberto ao público para visitação com entrada gratuita (VERBAND, s/d.).
Todavia, no século seguinte, foram construídos vários zoológicos na Europa, vistos também como locais de recreação e de ensino de história natural, não mais associados, necessariamente, a espaços da nobreza, pois propunham a divulgação do conhecimento científico entre a população em geral. O primeiro deles foi inaugurado em Londres, em 1828, com uma coleção de animais para estudo científico, chamado pela primeira vez de “Jardim Zoológico”. Em 1844, o primeiro zoológico na Alemanha foi inaugurado em Berlim. O primeiro zoológico da Suíça surgiu na Basiléia em 1874. Já na virada do séc. XIX para o séc. XX, havia mais de 20 zoológicos e aquários públicos na Alemanha (VERBAND, s/d.).
No período em que August Macke estava produzindo suas obras, dois outros zoológicos foram construídos na Alemanha: Hagenbeck em Hamburgo, fundado em 1907, e Hellabrunn em Munique, fundado em 1911. É provável que o pintor tenha conhecido este último, pois costumava passar períodos de veraneio em estações de águas às margens do Lago Tegern (Tegernsee), na Baviera. Inovador no Zoológico de Munique foi o fato de que os animais eram expostos com a maior liberdade possível. Assim, as jaulas e gaiolas com pouco espaço para movimentação foram substituídas por áreas maiores, gradeadas e com cenários artificiais ou com paisagens e vegetação adequada ao habitat natural dos animais e pássaros (VERBAND, s/d.).
Algo semelhante pode ser notado na obra Kleiner Zoologischer Garten in Braun und Gelb, pintado um ano após a inauguração do Zoológico de Hellabrunn, em Munique: a ausência de grades ou jaulas. Uma arara, um flamingo e um elefante se destacam nesse quadro, sendo que a arara se destaca dos demais por suas cores vivas. O elefante em tom verde escuro ocupa a parte central do quadro, em uma cena outonal, representada pela copa de uma das árvores em cores quentes – laranja e amarelo, o que produz luminosidade na parte superior esquerda, diferindo do predomínio de cores frias – marrom em tons claros e escuros, que predominam na parte inferior do quadro, onde figuram os visitantes do jardim zoológico, sete figuras humanas, sendo seis homens e uma mulher, que formam três duplas, enquanto o homem em destaque no primeiro plano está sozinho e é o único que apresenta detalhes faciais (nariz, olhos e boca). Todos exibem trajes sociais, com predominância do tom marrom para as vestes masculinas, com exceção de um dos homens, que esta com casaco verde com detalhes amarelos e com um chapéu coco também verde, acompanhado da única mulher na cena, que exibe um chapéu marrom com um arranjo em tom azul e branco, que combina com seu vestido azul. A dupla de homens do lado direito parece contemplar o flamingo, enquanto outra dupla do lado esquerdo está conversando. Já o cavalheiro solitário em primeiro plano está com ar melancólico e não contempla os animais.
Portanto, a obra Kleiner Zoologischer Garten in Braun und Gelb, cujo predomínio de cores é indicado no título – marrom e amarelo, e cujos contornos dos elementos que o compõem são pouco acentuados, apresenta o tema do jardim zoológico como local de sociabilidade e de lazer, mas também de conhecimento. Outro quadro de August Macke, igualmente pintado em 1912, apresenta semelhanças – Zoologischer Garten (Jardim Zoológico):
Zoologischer Garten
(1912; Jardim Zoológico)
Material: óleo sobre tela, 59,0 x 98,0 cm
(KUNST FÜR ALLE, s/d)
(https://www.kunst-fuer-alle.de/deutsch/kunst/kuenstler/kunstdruck/august-macke/345/1/560406/zoologischer-garten-i/index.htm )
Em termos estéticos, constata-se que o quadro Zoologischer Garten, pintado em 1912, se apresenta com fortes traços do Expressionismo, tanto em relação à definição de contornos, quanto em relação ao emprego de cores. Nele, é possível identificar alguns pássaros – uma arara, em destaque no lado esquerdo, um flamingo ao fundo, uma cacatua do lado direito, junto à qual há outro pássaro não identificado, e um cervo em primeiro plano, à direita, que está próximo de um dos visitantes do zoológico, um homem vestido com terno amarelo e usando chapéu coco em tons amarelo e vermelho. Além dele, visualiza-se no centro da tela outras três figuras humanas – homens em trajes sociais, igualmente vestidos com terno em tom azul e usando chapéu coco na mesma coloração.
Outro aspecto que pode ser notado no quadro Zoologischer Garten, que o difere de Kleiner Zoologischer Garten in Braun und Gelb, é a presença de grades em forma de cercados, que separam os animais e pássaros dos caminhos em que os visitantes transitam, bem como do lago em que se encontra o flamingo. Ao fundo, é possível reconhecer uma construção na cor branca, parecendo ser uma torre, sem que se possa identificar com precisão seu significado para a composição do tema. A vegetação representada pela copa de árvores, sobretudo na parte superior da tela, se expressa com cores quentes – amarelo – e frias – verde e azul escuro. O solo, ao contrário, é representado com cores quentes – amarelo e, principalmente, vermelho.
Ambos os quadros que têm por tema a visitação de jardins zoológicos se associam também aos quadros que representam cenas do universo circense no modo como integram tanto as atrações – os animais e pássaros nos jardins zoológicos, e os artistas circenses e animais no universo do circo, quanto aqueles que desfrutam de suas horas de lazer e buscam entretenimento – a platéia no circo e os visitantes no zoológico. Nota-se que, nas obras de August Macke, analisadas neste estudo, predomina certa formalidade expressada na forma como as pessoas se vestiam para ir a esses espaços, com predomínio de figuras masculinas. Certo é que, para o pintor, que faleceria prematuramente em setembro de 1914, ao ser morto em batalha na França, aos 27 anos de idade, aqueles anos que antecederam ao morticínio da Primeira Guerra Mundial representaram um período de intensa produtividade artística, em que telas, tintas e pincéis lhe permitiram empregar contornos e cores a cenas que exibiam as pessoas em atividades de lazer e de promoção de entretenimento artístico e cultural, apesar dos tempos sombrios em que viviam.
Referências Bibliográficas
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COELHO, Marília; MINATEL, Roseane. Circo: a arte do riso e prática de reconstrução social. Topos. v. 5, n. 1, p. 203-230, 2011. Disponível em: https://revista.fct.unesp.br/index.php/topos/article/view/2278. Acesso em: 20 abr. 2022.
CORNELSEN, Elcio Loureiro. Imagens do lazer na pintura de August Macke. BELA – Blog Estudos do Lazer (blog). Belo Horizonte, 14 dez. 2021. Disponível em: https://estudosdolazer.wordpress.com/author/elcornelsen/. Acesso em: 20 abr. 2022.
CORNELSEN, Elcio Loureiro. O velejar como lazer e sua representação na pintura de August Macke. Historia(s) do SPORT (Blog). Rio de Janeiro, 21 fev. 2022. Disponível em: https://historiadoesporte.wordpress.com/author/elcornelsen/. Acesso em: 20 abr. 2022.
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MEISTERDRUCKE. Bilder von August Macke, s/d. Disponível em: https://www.meisterdrucke.pt/artista/August-Macke.html. Acesso em: 06 dez. 2021.
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