O torcedor e o ato de torcer em duas canções da música popular

O início da parceria entre futebol e música no Brasil remonta aos primórdios da modalidade, quando ainda possuía sotaque britânico. Mas foi a partir da década de 1930, quando o futebol entrou em franco processo de popularização, que o refinamento poético e a diversidade de ritmos nessa relação se fizeram presentes. Se, no início, os choros, como “1 x 0” (1929), de Pixinguinha e Benedito Lacerda, marcaram época, foi o “casamento” com o samba que a parceria ganhou novos impulsos criativos, de muito improviso e variação temática.

Neste breve texto, trazemos dois exemplos dessa relação, especificamente duas canções que tem por tema o torcedor e o ato de torcer: “Time perna de pau” (1956), de Vicente Amar, na interpretação do conjunto Demônios da Garoa (1969), e “Eu quero ver gol” (1996), do grupo O Rappa. Embora quase quatro décadas separem essas duas canções, elas nos permitem vislumbrar olhares para o torcedor e o ato de torcer para um clube de futebol enquanto lazer.

Em termos de análise das canções, não obstante o fato de privilegiarmos neste breve estudo a letra em detrimento da melodia, não devemos perder de vista de que se trata de um discurso lítero-musical, como propõe o linguista Nelson Barros da Costa (2001).

O futebol e o ato de torcer para um time que deixa a desejar…

A canção “Time perna de pau” (1956), de Vicente Amar, tornou-se sucesso nas vozes do grupo paulistano Demônios da Garoa, em 1969. Mineiro radicado no Rio de Janeiro, funcionário do departamento musical da Rádio Nacional, Vicente Amar (1929-2012) teve dezenas de músicas gravadas por cantores do rádio. A canção “Time perna de pau” foi gravada, primeiramente, por Fafá Lemos e seu Conjunto, em 1956, e posteriormente, em 1961, pela dupla Ouro e Prata.

Todavia, foi no final da década de 1960 que “Time perna de pau” alcançou notoriedade pela interpretação dos Demônios da Garoa. Em 1969, o grupo gravou um compacto simples contendo as músicas “Time perna de pau”, de Vicente Amar, no lado B e “Timão”, de Samuel Andrade e Paulo Gallo, no lado A. Com longa carreira, o conjunto musical Demônios da Garoa foi formado na década de 1940. Seus maiores sucessos resultaram da parceira com o compositor Adoniran Barbosa, a partir de 1949. Dessa parceria se originaram sucessos como “Trem das Onze”, “Saudosa Maloca”, “O Samba do Arnesto”, “Tiro ao Álvaro” e “Ói Nóis Aqui Trá Veiz”. Na mesma linha, como o próprio título da canção indica, “Time perna de pau” se configura como uma sátira de um time com desempenho futebolístico aquém das expectativas de seus torcedores.

Num preâmbulo, construído discursivamente de modo dialógico, dois torcedores na porta do estádio discutem se irão entrar ou não para assistir ao jogo de seu time, mas o estádio já está cheio. Um deles diz:

Já rasguei a carteira do clube, eu não vô entrá não. A gente chega aqui, pede uma entrada de numerada e os caboclo lá de dentro do buraquinho do guichê diz assim pra gente: se quisé só no gaio. Ou no gaio ou lá no morrinho. E a gente gasta todo o salário da gente em fuguetório, fica rouco, rouco, rouco e esses cara num fazem nem um gol… (DEMÔNIOS DA GAROA, 1969)

Assim, o traço de identidade do torcedor é construído por um linguajar popular, marcado por variações linguageiras e de pronúncia do Português. Em um estádio lotado, não designado na letra, os torcedores não conseguem obter ingresso para o setor das cadeiras numeradas, só restando, segundo o “caboclo” do guichê, subir em uma árvore e sentar no “gaio”, ou então aproveitar um “morrinho” que permita a eles visualizarem o gramado, mesmo que em condições precárias e desconfortáveis.

Conforme o preâmbulo da canção, o perfil dos torcedores é de assalariados, que não poupam com gastos, que compram fogos de artifício para promover um “fuguetório” e gritam até ficarem roucos, em sua performance torcedora, embora o “time perna de pau” não responda satisfatoriamente a tanta euforia e comemoração:

Assim nosso time de futebol, vai mau,

Nosso jogador são tudo,

São “tudo” uns “perna de pau”,

Só “contratemo”, quem “num” sabe nem “chutá”,

Parecemos “muié” de malandro,

Só “sabemo” é “apanhá”,

Mais os “curpado”, são os nosso “direto”,

Que não dão aos “jogado”,

Assistência, “morá” nem “matéria”,

Se “nós tirá” em “urtimo” lugar,

A “curpa” é do “ténico”, que “num sabe orientá”. (DEMÔNIOS DA GAROA, 1969).

Trata-se, pois, de linguagem coloquial, além do tom de humor que perpassa o texto, na composição de uma cena cotidiana de torcedores de futebol, marcada por insatisfação e sofrimento pelo baixo rendimento do time do coração. Na última estrofe, os gritos de incentivo dos torcedores não salvam o time da iminente derrota:

Bola, vai, bola, vem,

Nosso time, entra bem,

Num se “sarva” ninguém, da derrota,

Será “possíver”, como é que pode,

Desse jeito eu morro,

“Nóis” grita, grita, grita,

E os nosso jogador,

Num fazem nem um “gorro”. (DEMÔNIOS DA GAROA, 1969)

Por fim, cabe ressaltar que o lugar social desses torcedores se constrói na letra da canção “Time perna de pau” também pelo linguajar. Embora se trate de uma canção de autoria de Vicente Amar, consideramos que é pertinente atribuir a ela um procedimento semelhante àquele apontado por Adriano de Paula Rabelo no artigo “Adoniran Barbosa e a língua certa do povo” (2020): “Ao expor a cultura e a linguagem dos estratos da sociedade mantidos na invisibilidade, o compositor exerce, ainda que de maneira involuntária, uma resistência às forças mais retrógradas do país.” (RABELO, 2020, p. 37)

A ida ao Maraca em uma tarde de domingo para “ver gol”

A canção “Eu quero ver gol” (1996) integra o segundo álbum do grupo O’Rappa, intitulado Rappa Mundi. Formado em 1993 no Rio de Janeiro, o grupo notabilizou-se no cenário musical brasileiro por seu estilo, influenciado por ritmos como o reggae e o ska, mas também com traços próprios dos ritmos urbanos, entre eles, o rap e o funk.

Em “Eu quero ver gol”, encena-se um dia na vida de um jovem morador de um morro, provavelmente localizado na Zona Norte do Rio de Janeiro, que programa seu domingo de lazer: ir à praia na badalada Zona Sul e, de lá, seguir para o Estádio do Maracanã para torcer por seu time de coração. A primeira estrofe já evidencia sua principal intenção, que é a de “ver gol” no templo sagrado do futebol brasileiro:

Batuque, balanço, swing, praia e carnaval

Hoje no pé do morro tem ensaio geral

Eu quero ver gol eu quero ver gol

Não precisa ser de placa eu quero ver gol (O RAPPA, 1996)

O ritmo musical e a performance corporal do balanço e do swing animam esse jovem torcedor, que também pensa no carnaval e no ensaio geral no pé do morro em que mora. Aparentemente, o ápice do dia seria a vivência epifânica de um gol, que “[n]ão precisa ser de placa eu quero ver gol”. Na estrofe seguinte, o jovem mostra-se ansioso pela chegada do domingo, não obstante a distância espacial que tem de percorrer para ir à Praia de Copacabana, para o banho de mar:

Dois dias sem dormir chega domingo de manhã,

Fica difícil passar sem um banho de mar

Tem a distância lotação, tumulto então,

Tô no favelinha, peguei fora da linha

Méier-Copacabana é o bonde ideal,

No ponto final o rebu é total

Pula pela janela pro bonde é normal

Zuando no asfalto, zuando na areia

Quando chegar na água vou me acabar

Quando chegar na água jacaré o que vai dar, (O RAPPA, 1996)

Toda a agitação no transporte, uma verdadeira aventura para se chegar à Zona Sul, seja o lotação, seja o ônibus da linha urbana, para, enfim, “zuar” no asfalto e na areia da “princesinha do mar”, como Copacabana é designada na letra da canção de Nana Caymmi, de 1985. O linguajar desse jovem também é marcado por gírias, por exemplo, pelo termo “bonde”, que significa “estar em grupo”, “estar em companhia”, ou por “rebu”, para “desordem”, “confusão”. Mas, ao final da longa jornada o jovem só quer “se acabar” na água, se divertir pegando “jacaré”, ou seja, entrando de peito em uma onda e deixando o corpo ser levado até a praia. Mas o “barato” está também no consumo na areia, em geral, garantido por ambulantes que, assim como ele, se deslocam da Zona Norte e de outras partes da cidade para tentar garantir o sustento para suas famílias vendendo diversos produtos, conforme os versos a seguir:

Tem limão, tem mate, melancia fatiada,

O globo sal e doce, dragão chinês (2x)

Tô no rango desde as 2 e a lombra bateu

O jogo é as 5 e eu sou mais o meu

Tô com a geral no bolso garanti o meu lugar

Vou torcer, vou xingar pro meu time ganhar… (O RAPPA, 1996)

Bebidas, frutas, salgados e sorvetes estão ali para serem consumidos. E quem está familiarizado com o Rio logo identifica o biscoito de polvilho da marca “Globo” e também os picolés “Dragão Chinês”, sempre mais barato que os sorvetes das grandes marcas que dominam o mercado. E o jovem está comendo o “rango” desde as 02 horas da tarde e curte um relaxamento extremo, a “lombra”, mas está atento que às 05 horas o juiz trilará o apito no Maraca, e ele precisa se agitar e seguir da praia para o estádio. Assim como os produtos que consome na praia, o dinheiro só dá para ingressar na Geral, espaço que muitos olham com nostalgia após a reforma do Estádio do Maracanã, por conta da Copa das Confederações em 2013 e, respectivamente, da Copa do Mundo de 2014, quando a Geral deixou de existir e, com ela, toda uma cultura popular do torcer: “Vou torcer, vou xingar, pro meu time ganhar”. O torcedor, muito animado com o seu domingo, tem um desejo: “Porque eu quero ver gol eu quero ver gol/Não precisa ser de placa eu quero ver gol”.

O sofrimento e a alegria do torcedor – a guisa de conclusão

Conforme bem aponta Jefferson Nicássio Queiroga de Aquino em sua Tese intitulada O torcer no futebol como possibilidade de lazer e vínculo identitário para torcedores de América-MG, Atlético-MG e Cruzeiro (2017),

[…] como elemento importante de nossa cultura, vivenciamos o futebol das mais variadas formas nos nossos momentos de lazer, seja na prática deste esporte através das peladas de rua ou em quadras e campos, rachas e bate-bolas, na leitura de notícias em jornais e ou pela internet, jogos de computador ou vídeo game e também na assistência despretensiosa ou como torcedor de algum clube, seja em casa pela televisão ou indo aos estádios. (AQUINO, 2017, p. 13)

Nas canções analisadas neste breve estudo, enfocamos, justamente, esta última modalidade do torcer enquanto lazer: a ida ao estádio para torcer pelo time de coração. Mesmo que haja diferenças nas espacialidades tratadas nas canções – um estádio de São Paulo nos anos 1950/1960 (Pacaembu, Parque Antártica, Canindé, Parque São Jorge etc.) e o Maracanã nos anos 1990 –, a emoção de ver seu time em campo e de marcar gols em busca da vitória é o que move os torcedores. Enquanto estes, na canção “Time perna de pau”, se queixam da baixa qualidade técnica de seu time, que não fazem jus sequer ao “fuguetório” que eles promovem ao comprar rojões com o pouco que sobra de seus salários, e aos gritos incansáveis de incentivo, o jovem da canção “Eu quero ver gol” não imagina seu domingo sem praia e futebol, não obstante as condições adversas em que vive, superadas com todos os esforços. Se o tom dos primeiros é de queixa, o deste último é de desejo: o de ver um gol marcado da Geral do Maracanã, e nem precisa ser um gol resultante de uma bela jogada ou da habilidade de um atacante, “não precisa ser de placa”, o gol é o momento máximo, epifânico, de pura iluminação que faz os torcedores extravasarem de emoção.

Referências Bibliográficas

AQUINO, Jefferson Nicássio Queiroga de. O torcer no futebol como possibilidade de lazer e vínculo identitário para torcedores de América-MG, Atlético-MG e Cruzeiro (2017). Tese. Belo Horizonte: EEFFTO/UFMG, 2017. Disponível em: http://www.eeffto.ufmg.br/eeffto/DATA/UserFiles/files/Disserta%C3%A7%C3%A3o_ppgie_Jefferson_Aquino(1).pdf. Acesso em: 17 mar. 2023.

COSTA, Nelson Barros da. A produção do discurso lítero-musical brasileiro. Tese. São Paulo: PUC-SP, 2001, p. 377-390. Disponível em: http://www.educadores.diaadia.pr.gov.br/arquivos/File/2010/artigos_teses/LinguaPortuguesa/tese_nelson.PDF . Acesso em: 17 mar. 2023.

DEMÔNIOS DA GAROA. Time perna de pau (1969). Disponível em: https://www.letras.mus.br/demonios-da-garoa/710003/. Acesso em: 17 mar. 2023.

O RAPPA. Eu quero ver gol (1996). Disponível em: https://www.letras.mus.br/o-rappa/75764/. Acesso em: 17 mar. 2023.

RABELO, Adriano de Paula. Adoniran Barbosa e a língua certa do povo. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros. Brasil, n. 77, p. 37-50, dez. 2020. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rieb/a/GtMbpJ4qCs6wTqVPd9LXRxJ/?format=pdf&lang=pt. Acesso em: 17 mar. 2023.

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Espaços de lazer em desenhos de Heinrich Zille – um olhar social na Berlim antiga

Elcio Loureiro Cornelsen

No presente artigo, daremos prosseguimento à análise de obras do pintor, fotógrafo, litógrafo, desenhista e caricaturista alemão Heinrich Zille (1858-1929). Em artigo anterior, intitulado “Imagens do lazer em desenhos de Heinrich Zille no início do século XX”[1] e publicado em 03 de agosto de 2022, enfocamos a representação de banhistas em desenhos desse artista, que frequentavam a faixa de praia do Wannsee, um dos grandes lagos de Berlim. Em outro artigo, publicado em 03 de outubro de 2022, intitulado “As artes plásticas e suas representações do lazer: uma questão de olhar social”,[2] propusemos um breve estudo comparado entre obras de August Macke (1887-1914) e de Heinrich Zille.

Todos esses artigos versam sobre algo que é peculiar na obra do “Raffael dos cortiços” (Raffael der Hinterhöfe), como Zille era pejorativamente chamado: o olhar social do artista para as camadas proletárias na então capital do Império alemão, incluindo seus momentos de lazer e de entretenimento. Algo frequentemente reiterado é o fato de que o artista chegou a cunhar um termo próprio para definir a ambientação em que figuras proletárias, lumpen, pobres e miseráveis circulavam: o “Milljöh”, uma adaptação, por assim dizer, jocosa, do termo francês “milieu”, “meio”, um dos vértices do pensamento social veiculado pelo Positivismo nas últimas décadas do século XIX, juntamente com os conceitos de “raça” e de “momento”.

Todavia, Heinrich Zille empregava o termo “Milljöh” em sentido distinto daquele propagado por positivistas: para o artista, nesse “meio” berlinense encontravam-se vários tipos sociais, muitas vezes invisibilizados ou criminalizados, que seriam dignos de serem retratados, não no sentido do que poderiam conter de “exótico” aos olhares burgueses, ma sim no sentido de que, não obstante todas as dificuldades que enfrentavam, também desfrutavam de momentos de lazer e entretenimento. Conforme ressalta o escritor Hans Ostwald, autor da obra Das Zillebuch (1929; O Livro de Zille), que contou com a participação de Heinrich Zille, “[c]om total amor e total consciência, ele relatava também sobre a força do povo” (OSTWALD, 1929).[3] Mais do que mero espectador e observador do “Milljöh”, o artista era parte dele: “A essência de Zille só pode ser compreendida se soubermos que ele não foi apenas um espectador deste pequeno mundo. Ele vivia com este mundo. Ele viveu neste mundo. Ele está familiarizado com tudo o que representa. Ele é parte deles” (OSTWALD, 1929).[4]

Para este artigo, propomos a análise de quatro obras de Heinrich Zille, que bem representam esse “Milljöh” social e, ao mesmo tempo, espacializam determinadas áreas da cidade da Berlim antiga: Nauener Platz (1911; Praça de Nauen), Im Berliner Tiergarten (1911; No Tiergarten der Berlim), Winterfreude an der Jungfernbrücke (1911; Alegria de inverno na Ponte das Virgens) e Weihnachtsmarkt am Arkonaplatz (1912; Mercado de natal na Praça Arkona). Nota-se, pois, que os títulos das quatro obras indicam topônimos: um parque (Tiergarten), duas praças (Nauener Platz e Arkonaplatz) e uma ponte (Jungfernbrücke). Uma contextualização nos permitirá não só refletir sobre esses espaços, como também captar certos sentidos transmitidos por Heinrich Zille nessas obras.

Iniciemos, pois, com a análise da obra Nauener Platz (1911; Praça de Nauen):

Nauener Platz
(1911; Praça de Nauen)
Material: giz preto, aquarela e tinta opaca, 22 x 36,8 cm
(https://www.kunst-fuer-alle.de/deutsch/kunst/kuenstler/kunstdruck/heinrich-zille/28498/1/558740/nauener-park/index.htm )

Conforme mencionamos anteriormente, a contextualização nos auxilia na tarefa de interpretar os desenhos de Heinrich Zille, que possuem um colorido local todo especial, como se fossem instantâneos de uma metrópole em franca expansão, com aumento significativo de sua população e com a decorrente formação de alguns bolsões de pobreza. De início, chama à atenção a quantidade de mulheres e crianças, algumas de colo, retratadas em primeiro plano nesse desenho. É como se elas tivessem se reunido na praça, cinco crianças brincam de ciranda, ao centro, girando em torno de uma haste fincada no chão, em cuja ponta está enfiado o gargalo de uma garrafa vazia. As mulheres embalam bebês, uma delas segura gêmeos no colo e outra, amamenta um bebê. Um bebê dorme em um carrinho, e outras crianças menores estão sentadas ou engatinham no chão. Algumas mulheres parecem conversar entre si, e uma delas, sentada em um banco da praça, do lado direito da imagem, está grávida.

Portanto, poderíamos supor que se trate de uma cena cotidiana, em que mães se reúnem na praça – uma placa no lado direito superior do desenho indica o topônimo “Nauener Platz”. Enquanto cuidam dos filhos menores e conversam entre si, os filhos maiores brincam animadamente. Porém, não é só isso, pois o histórico desse topônimo nos permite ir além do que vemos. A Nauener Platz (Praça de Nauen) se localiza no centro de Berlim, no bairro Mitte (Centro), na divisa com o bairro proletário de Wedding. Desde 1976, aliás, esse topônimo dá nome também a uma estação de metrô, localizada no entorno da praça. Consta que a praça recebeu esse nome em 1910, ou seja, um ano antes de Heinrich Zille tê-la eternizado em seu desenho. Com o aumento da população, bairros centrais e adjacentes demandaram a construção de moradias e de espaços ao ar livre. Conforme ressaltamos em artigo anterior (CORNELSEN, 2022), várias moradias eram insalubres, sobretudo as chamadas Mietskasernen – conjunto de prédios com vários pátios internos e apartamentos alugados que eram verdadeiros cubículos, em que famílias inteiras viviam em apenas um cômodo. Nada mais natural que as pessoas buscassem espaços externos e arborizados durante algumas horas do dia. A vida dura de muitos proletários e lumpen que moravam nesse tipo de habitação os impelia a buscar outros espaços, nos quais pudessem fruir as horas, desfrutar de atividades de lazer e entretenimento.

Entretanto, há um aspecto que evidencia o motivo da presença maciça de mulheres e crianças na Nauener Platz: por volta de 1900 se localizava no entorno da praça uma maternidade destinada a mães solteiras, mantida pelo Exército da Salvação. Isso pode ser um indício da ausência de homens em primeiro plano, em que as mães, sozinhas, cuidam de seus filhos. Além disso, em seu desenho, Heinrich Zille expressa o aumento populacional da época através da representação de várias crianças, quase trinta, duas vezes mais que o número de mulheres retratadas.

Por sua vez, na obra Nauener Platz, notamos a presença masculina no plano de fundo, primeiramente, com a representação de um homem que está sentado em um banco de praça e, ao seu lado, está uma garrafa, de modo que seria plausível pensar em um desempregado ou desocupado que crê poder aplacar as agruras da vida com consumo de álcool. Aliás, a garrafa na haste, utilizada pelas crianças que formam a ciranda, é um indício de que alguém a largou ali, na praça. Um pouco mais atrás, no centro do desenho, vemos outros dois homens em pé, que estão conversando, enquanto quatro crianças estão sentadas próximas, brincando. No centro da praça, há uma pequena construção, que parece ser um banheiro público, típico da época. Além desses dois homens, é possível visualizar outros homens e mulheres ao fundo, alguns esperando ou embarcando em um ônibus na rua lateral esquerda da praça, e outros do lado direito.

De certo modo, a segunda obra a ser analisada, o desenho intitulado Im Berliner Tiergarten (1911; No Tiergarten de Berlim), guarda relações temáticas com o desenho Nauener Platz:

Im Berliner Tiergarten
(1911; No Tiergarten de Berlim)
Material: giz preto, aquarela e tinta opaca, 25,2 x 49,5 cm
(https://www.kunst-fuer-alle.de/deutsch/kunst/kuenstler/kunstdruck/heinrich-zille/28498/1/559300/im-berliner-tiergarten/index.htm )

Em termos de espacialização, há uma distinção significativa de ordem social: o Tiergarten (literalmente: jardim de animais), que permanece sendo o principal e maior parque localizado na parte central da cidade de Berlim, tem um longo histórico que remonta ao século XVI, com a criação de uma área de caça para os nobres de Brandenburgo. No século XVIII, com as transformações pelas quais a então capital da Prússia passou, o Tiergarten deixou de ser uma área de caça por ordem de Frederico II, para se tornar um parque, no qual as pessoas poderiam desfrutar de seus momentos de lazer, com suas alamedas, pequenos lagos e cursos d’água, suas pontes e rica vegetação. Mais tarde, na segunda metade do século XIX, o Tiergarten abrigaria também uma série de esculturas e monumentos, que podem ser vistos ainda nos dias de hoje.

Por volta de 1900, o Tiergarten ainda guardava certos traços de nobreza de sua origem, o que refletia no perfil social de seus frequentadores. De certo modo, esse desenho de Heinrich Zille reproduz tal perfil. Se contrastado com o desenho Nauener Platz, Im Berliner Tiergarten representa, igualmente, mulheres cuidando de crianças, com uma diferença fundamental: seis delas estão uniformizadas, tratando-se, pois, de empregadas ou amas de leite. Apenas uma mulher, que está sentada no banco do lado direito, traja vestes à moda burguesa, podendo ser a mãe de uma ou mais crianças que estão brincando aos seus pés. O uniforme das outras mulheres é padrão, com lenços na cabeça e aventais brancos. Os dois carrinhos de bebê também são luxuosos, se comparados com o carrinho do outro desenho. Ao todo, visualizam-se 16 crianças de diversas idades. Uma, inclusive, um pouco maior, está sentada ao lado da mulher no banco e lê um livro. Outras crianças estão brincando sentadas ou deitadas no chão de areia, possuem brinquedos – bola, pás, balde –, constroem um castelo em que se vê uma haste contendo a bandeira imperial com a águia na ponta, além de estarem acompanhadas por pequenos cães de estimação. Além disso, duas figuras masculinas aparecem no desenho: ao centro, visualiza-se um homem em uniforme do exército imperial, com o seu inconfundível capacete com ponta de lança. Ele conversa com uma das mulheres, enquanto outro, igualmente em uniforme, mas usando quepe ao invés de capacete, está sentado em um banco conversa com outra mulher que tem um bebê no colo.

Diante da análise, não nos parece casual a proximidade temática entre os dois desenhos publicados em 1911. É provável que Heinrich Zille, intencionalmente, quis representar a estratificação social na capital do Reich a partir de dois espaços topográficos – a Nauener Platz e o Tiergarten –, em que as pessoas, em situações similares – o da fruição das horas, o cuidado com crianças e bebês e a atividade lúdica revelam as distinções sociais. A comparação, inclusive, nos permite entender que não deixa de existir certa postura crítica do artista para a estratificação social da época. Devemos ressaltar também que, para as empregadas ou amas de leite, não se tratava de tempo livre, mas sim de trabalho.

A terceira obra selecionada para análise no presente artigo é Winterfreude an der Jungfernbrücke (1911; Alegria de inverno na Ponte das Virgens):

Winterfreude an der Jungfernbrücke
(1911; Alegria de inverno na Ponte das Virgens)
Material: giz preto e aquarela, 59.6 x 42.8 cm
(https://www.kunst-fuer-alle.de/deutsch/kunst/kuenstler/kunstdruck/heinrich-zille/28498/8/558404/winterfreuden-an-der-jungfernbruecke/index.htm )

A Jungfernbrücke localiza-se, ainda hoje, no centro de Berlim, é a ponte mais antiga da cidade. Originalmente, ela compunha o conjunto de nove pontes levadiças idênticas, localizadas sobre os canais centrais do Spree, rio que corta a cidade. Além de ligar as ruas Friedrichsgracht e Oberwasserstrasse, ao ser elevada, a ponte permitia também o trânsito fluvial de embarcações de maior calado. Até hoje, por sua arquitetura, a Jungfernbrücke ainda atrai turistas. Originalmente, consta que foi construída em 1688 com estrutura de madeira. Somente pouco mais de um século mais tarde, em 1798, a ponte original foi substituída por outra de madeira e ferro, a qual passou por processos de restauração, mas guarda ainda hoje sua estrutura original. Aliás, a origem de seu nome é incerta, havendo para ele algumas versões. Uma delas versa que havia um espaço para homens se banharem nas proximidades, e que as “donzelas” teriam seu espaço de locomoção limitado até a ponte. Outra versão, trágica, alude a um suposto feminicídio ocorrido sobre a ponte ou nas proximidades dela, em que o assassino teria sido movido por ciúmes e cometeu tal ato contra uma jovem.

Todavia, independente do real significado desse topônimo, a atmosfera transmitida por Heinrich Zille nesse desenho é de alegria (Freude) em uma estação do ano associada ao frio intenso e a longas horas de escuridão: o inverno (Winter). Nota-se pela representação das figuras que todas estão bem agasalhadas e procuram se entreter patinando ou deslizando de trenós no chão nevado, enquanto outras as observam. Mais uma vez, há várias crianças. Em um dos trenós, em primeiro plano, vê-se uma mulher levando outras duas crianças, o que ocorre igualmente com o homem no centro da imagem, que leva outras duas crianças em seu trenó. Até os dias de hoje, aliás, é uma prática em Berlim deslizar de trenó na neve. Percebe-se que é época próxima das festividades natalinas, pois, do lado direito do desenho, próximo da ponte, está a placa com seu nome e dois pinheirinhos. Do lado direito, vê-se crianças e adultos. Uma figura que caminha no sentido contrário de quem contempla a imagem, parecendo ser um homem, carrega um saco nas costas, talvez seja a figura de um mendigo ou trapeiro.

Caberia, ainda, uma reflexão sobre os equipamentos representados nesse desenho: os patins no gelo, sapatos especiais com lâminas para patinadores deslizarem em superfícies de gelo; os trenós, pequenos veículos de madeira com lâminas em sua base, utilizados para descer terrenos em ligeiro declive (morros, ladeiras, caminhos, ruas etc.). Ao todo, visualizamos 07 trenós e apenas 02 pares de patins no gelo. Pelo menos, desde meados do século XVIII, difundiu-se na Alemanha a patinação no gelo, tornando-se um divertimento popular da burguesia. No início do século XX, já se usava patins com lâminas de aço, que substituíram as versões anteriores, com lâminas de ferro ou de osso. Certamente, devido ao custo, nem todos tinham acesso a tal equipamento. Já o trenó é constituído de uma base de madeira plana em formato de estrado, que contem sobre si duas longas lâminas igualmente de madeira ou revestidas de ferro ou aço, sendo que o trenó demanda menos neve que os esquis para deslizar. Embora trenós sejam usados como meio de transporte de inverno há milhares de anos, alguns movidos, inclusive, a tração animal, modelos menores foram desenvolvidos e passaram a ser utilizados também para lazer e entretenimento, como os representados no desenho de Heinrich Zille. Outro aspecto a se destacar em relação aos trenós é seu modo de condução, pois vemos que alguns preferem sentar-se sobre o estrado, enquanto outros deitam-se sobre ele e, de acordo com o movimento de corpo, se deslocam em linha reta ou para um dos lados.

Assim, o pequeno declive da ponte para a rua proporcionava às crianças e aos adultos momentos de diversão ao deslizarem sobre a neve com seus patins ou trenós. Aliás, cabe destacar que, se comparado com uma fotografia da ponte, o desenho nos permite reconhecer a acuidade do artista ao representá-la em detalhes, em que se reconhece suas quatro colunas de ferro, as correntes e as formas curvilíneas onde se localizavam as roldanas utilizadas para içar as duas partes da ponte levadiça. Desse modo, para além de suas funções cotidianas – a de permitir, ao ser içada, o tráfego de embarcações de maior calado pelo canal do rio Spree, ou a de unir duas vias públicas –, em Winterfreude an der Jungfernbrücke a vemos como uma pista improvisada em pleno espaço urbano, própria para se deslizar no gelo, para deleite daqueles que se divertiam com seus patins ou trenós, ou mesmo para os que contemplavam a cena, posicionados nas laterais da ponte.

Por fim, analisaremos a seguir a obra Weihnachtsmarkt am Arkonaplatz (1912; Mercado de natal na Praça Arkona):

Weihnachtsmarkt am Arkonaplatz
(1912; Mercado de natal na Praça Arkona)
Material: giz preto e giz colorido, 43,8 x 33 cm

De certo modo, esse desenho se relaciona com o anterior, uma vez que se trata de uma cena de inverno, no período natalino. Primeiramente, cabe-nos contextualizar o próprio espaço – a Arkonaplatz. Assim como a Nauener Platz e a Jungfernbrücke, essa praça se localiza, ainda em nossos dias, na parte central de Berlim, no bairro Mitte (Centro). A Arkonaplatz foi erigida em meados do século XIX e recebeu seu nome em homenagem às falésias do Cabo Arkona, na ilha de Rügen, localizada no Mar Báltico. Desde a sua origem, a praça, com seus prédios residenciais modestos ao seu redor, tornou-se um bairro para as camadas pobres da população berlinense.

Conforme atestado pelo desenho de Heinrich Zille, além dos usos cotidianos como espaço verde próprio para caminhadas ou para se sentar, descansar e brincar ao ar livre, a praça também era utilizada para pequenos eventos no bairro, como o Mercado de Natal (Weihnachtsmarkt), semelhante a uma quermesse. Inclusive, até nos dias de hoje, realiza-se aos domingos um “mercado de pulgas” (Flohmarkt) na Arkonaplatz. A organização e a realização de Mercados de Natal possuem uma longa tradição nas cidades alemãs que remonta às feiras da Idade Média, em geral, realizados a partir do 1º Advento no calendário cristão, no primeiro domingo de dezembro, até alguns dias após as festas natalinas. Em tais mercados são oferecidos ao público vários produtos, desde artesanato para decoração de Natal – velas, enfeites, arranjos, guirlandas etc. – até comida e bebida – típico são o vinho quente (Glühwein) e o ponche, mas também cerveja e salsichas ou caldos, diversos pães ou doces de marzipan ou pão de mel, chocolate, algodão doce, além de castanhas, nozes e amêndoas torradas. Também há números musicais natalinos e exposição de presépios.

O desenho de Heinrich Zille nos transmite essa atmosfera do Mercado de Natal na capital do Reich, em 1912. Reconhecemos, por exemplo, alguns estandes, sendo que, em um deles, uma senhora vende algum tipo de alimento que está em uma grande panela fumegante. Crianças estão próximas do estande, o que nos leva a deduzir que possa ser algum tipo de doce. Aliás, são várias as crianças representadas no desenho, todas vestidas com roupas pesadas, próprias para o inverno rigoroso. Elas caminham sobre o terreno da Arkonaplatz coberto de neve. Em primeiro plano, figura um menino acompanhado de uma menina, e ambos trazem nas mãos bonecos: o menino exibe um boneco de um palhaço, e a menina segura outros bonecos, que poderiam ter ganhado em algum estande de gincana, algo também típico em mercados natalinos. Vemos também algumas mulheres posicionadas junto à parede de madeira de um dos estandes, e também toda a decoração da praça, com seu candeeiro iluminado, suas árvores com galhos secos, e um dos prédios de moradia ao seu redor, com o telhado coberto de neve.

Portanto, nessa cena noturna, pessoas desfrutam de seu lazer associado ao calendário cristão. Muitas delas deixam seus cubículos localizados em prédios no entorno da praça e ruas adjacentes para poder estar ao ar livre, mesmo no frio intenso, para vivenciar o ambiente de socialização em um domingo de dezembro. Certamente, o baixo poder aquisitivo em um bairro proletário se tornava um aspecto restritivo para muitos que frenquentavam o Mercado de Natal.

Para encerrar nossas considerações gerais, após termos analisado as quatro obras que formam o corpus deste breve estudo, apontamos alguns aspectos que corroboram nossa opinião acerca do olhar social transmitido pelo artista Heinrich Zille ao representar espaços e tipos humanos da Berlim antiga em seus momentos de lazer e diversão. O primeiro deles se refere à espacialização das cenas, enfatizada também pelos títulos dos desenhos, que integram os topônimos Nauener Platz, Tiergarten, Jungfernbrücke e, respectivamente, Arkonaplatz. Destes, apenas o Tiergarten não se localiza no Mitte, bairro proletário de Berlim no início do século XX. Conforme apontamos anteriormente, o desenho Im Berliner Tiergarten contrasta, em termos de representação social, com o desenho Nauener Platz: enquanto no primeiro desenho figuras da burguesia são retratadas, no segundo predominam figuras das camadas pobres. Estas também são objeto dos desenhos Winterfreude an der Jungfernbrücke e, respectivamente, Weinachtsmarkt am Arkonaplatz. Em suma: Heinrich Zille colocou sua arte a serviço do “Milljöh” berlinense, que tanto amava e admirava. Desse modo, as palavras de Hans Ostwald nos parecem precisas: “No sentido mais amplo e sincero da palavra, Heinrich Zille era um artista local” (OSTWALD, 1929).[5] O “Raffael dos cortiços” não só retratava as transformações urbanas por que passava a Berlim antiga, com aumento populacional considerável e com a necessidade de moradia e de espaços de lazer e entretenimento para as diversas camadas sociais, como também propunha um determinado olhar para cenas cotidianas. De certo modo, a natalidade, tema dos dois primeiros desenhos, se faz presente também nos demais, em cenas nas quais o número de crianças supera a de adultos. Aliás, em toda a obra do artista, as crianças eram retratadas de um modo especial, mesmo as provenientes dos bairros pobres da Berlim antiga:

Essas crianças também não estão passando fome. Alguns são talvez um pouco raquíticos. Mas Zille não pôde deixar de relatar através de seu lápis e provar que Berlim não deixa seus filhos passarem fome. Suas crianças são todas bem roliças e gordas. E mesmo que sofram com os danos causados ​​pela cidade grande: têm senso de humor, saltam para a vida felizes e saberão organizar melhor a vida (OSTWALD, 1929).[6]

Assim, a arte se revela como uma fonte significativa para pensarmos as representações sociais de uma dada época, e como lazer e divertimento recebem tratamento estético pautado por um determinado olhar social.

Referências Bibliográficas

CORNELSEN, Elcio Loureiro. Imagens do lazer em desenhos de Heinrich Zille no início do século XX. BELA – Blog de Estudos do Lazer. 03 ago. 2022. Disponível em: https://estudosdolazer.wordpress.com/author/elcornelsen/. Acesso em: 26 set. 2022.

CORNELSEN, Elcio Loureiro. As artes plásticas e suas representações do lazer: uma questão de olhar social. História(s) do Sport (blog). 03 out. 2022. Disponível em: https://historiadoesporte.wordpress.com/2022/06/13/banhistas-e-sua-representacao-na-pintura-de-august-macke/. Acesso em: 05 out. 2022.

OSTWALD, Hans. Das Zillebuch. Com participação de Heinrich Zille, Berlin: Paul Francke Verlag, 1929. Disponível em: https://www.projekt-gutenberg.org/zille/zillebuc/chap001.html. Acesso em: 11 out. 2022.

Notas

[1] CORNELSEN, Elcio Loureiro. Imagens do lazer em desenhos de Heinrich Zille no início do século XX. BELA – Blog de Estudos do Lazer. 03 ago. 2022. Disponível em: https://estudosdolazer.wordpress.com/author/elcornelsen/. Acesso em: 26 set. 2022.

[2] CORNELSEN, Elcio Loureiro. As artes plásticas e suas representações do lazer: uma questão de olhar social. História(s) do Sport (blog). 03 out. 2022. Disponível em: https://historiadoesporte.wordpress.com/2022/06/13/banhistas-e-sua-representacao-na-pintura-de-august-macke/. Acesso em: 05 out. 2022.

[3] OSTWALD, Hans. Einleitung. In: OSTWALD, Hans. Das Zillebuch. Com participação de Heinrich Zille, Berlin: Paul Francke Verlag, 1929. Disponível em: https://www.projekt-gutenberg.org/zille/zillebuc/chap001.html. Acesso em: 11 out. 2022. Todas as traduções do Alemão para o Português são de nossa autoria. No original:

Mit voller Liebe und mit vollem Bewußtsein berichtete er auch von der Kraft des Volkes.

[4] OSTWALD, Hans. Das Zillebuch. Com participação de Heinrich Zille, Berlin: Paul Francke Verlag, 1929. Disponível em: https://www.projekt-gutenberg.org/zille/zillebuc/chap001.html. Acesso em: 11 out. 2022. No original:

Zilles Wesen ist nur zu verstehen, wenn man weiß, daß er nicht nur Zuschauer dieser kleinen Welt war. Er lebte mit dieser Welt. Er lebte in dieser Welt. Er ist vertraut mit allem, was er darstellt. Er ist ein Stück von ihnen.

[5] OSTWALD, Hans. Das Zillebuch. Com participação de Heinrich Zille, Berlin: Paul Francke Verlag, 1929. Disponível em: https://www.projekt-gutenberg.org/zille/zillebuc/chap001.html. Acesso em: 11 out. 2022. No original:

Im weitesten und gemütvollsten Sinne des Wortes war Heinrich Zille eben ein Heimatskünstler.

[6] OSTWALD, Hans. Das Zillebuch. Com participação de Heinrich Zille, Berlin: Paul Francke Verlag, 1929. Disponível em: https://www.projekt-gutenberg.org/zille/zillebuc/chap001.html. Acesso em: 11 out. 2022. No original:

Diese Kinder sind ja auch nicht verhungert. Einige sind vielleicht ein wenig rhachitisch. Aber Zille konnte doch nicht anders als durch seinen Stift zu melden und zu beweisen, daß Berlin seine Kinder nicht hungern läßt. Seine Kinder sind alle schön rund und derb. Und wenn sie auch unter den Großstadtschäden leiden: sie haben ihren Humor, springen vergnügt ins Leben hinein und werden schon wissen, das Leben besser einzurichten.

Imagens do lazer em desenhos de Heinrich Zille no início do século XX

Nos últimos anos, temos nos dedicado a estudar imagens do lazer veiculadas nas artes plásticas, sobretudo no século XIX e início do século XX. Fonte de inspiração para estudos dessa natureza foi a obra Esporte, lazer e artes plásticas: diálogos (2009), de Victor Andrade de Melo. Hoje, elegemos a obra do pintor, fotógrafo, litógrafo, desenhista e caricaturista alemão Heinrich Zille (1858-1929). O que nos interessou de modo especial pela obra desse artista foi seu caráter popular, muito associado às camadas pobres da cidade de Berlim na virada do século XIX para o século XX.

Em suas obras desse período, encontramos inúmeras cenas da vida precária da camada proletária de Berlim, cujo ambiente se tornou seu “Milljöh”, como Heinrich Zille a designava, em uma adaptação jocosa do termo francês “milieu”, “meio”, conceito central da abordagem determinista do comportamento humano, fundamentada no positivismo, juntamente com “raça” e “momento”, de acordo com a proposição do crítico literário francês Hippolyte Taine (1828-1893) (BRASCH, 2021). Segundo Hans Ostwald,

O “Milljöh” de Zille tornou-se proverbial e é um conceito amplamente conhecido. Abrange quase toda a sua obra. E Zille se tornou tão popular porque em seu trabalho ele sempre mostrou nosso povo, nosso ambiente local, em suas melhores e muitas vezes divertidas manifestações. Mesmo nos casos em que ele figurava como voz de alerta e retratista social, muitas vezes era necessário concordar com ele. (OSTWALD; ZILLE, 1929) [I]

De acordo com a jornalista Maria Kotsev, “Zille olhou onde doía. Ele estudou a vida dos trabalhadores e trabalhadoras de Berlim durante a industrialização, o ‘Milljöh berlinense’, em suas andanças por becos, bares e quartos precários em que moravam” (KOTSEV, 2021).[II] Tal ambiente propiciava ao artista a apreensão de cenas dos pátios internos de cortiços precários e superlotados, as chamadas “Mietskasernen”, de becos e de botecos dos bairros proletários. No franco processo de urbanização, as “Mietskasernen” berlinenses se tornaram sinônimo de moradias precárias, de aluguel, pouco iluminadas e arejadas, com cubículos habitados por famílias numerosas (STROHMEYER, 2014). Foi, aliás, no contexto do interesse por esse “Milljöh”, um período de profunda mudança na carreira de Zille, que deixava o ateliê de fotografia, onde trabalhou por décadas, para conhecer a realidade das ruas de Berlim, sobretudo aquelas marcadas pela injustiça social, pelo desemprego e pela miséria que grassavam em bairros humildes da capital alemã.

Quarto em uma “Mietskaserne” berlinense, no início do século XX
(STROHMEYER, 2014)
(https://www.dhm.de/lemo/kapitel/kaiserreich/alltagsleben/mietskaserne.html )

Naquela época, Heinrich Zille já era conhecido no meio artístico como exímio retratista. Todavia, pelo teor de crítica social veiculado em suas obras, que desmascaravam as mazelas do Império alemão sob o domínio de Guilherme II, o artista não era bem quisto entre os poderosos e as classes abastadas. Seus desenhos eram divulgados em exposições e, sobretudo, em revistas marcadas pelo tom satírico e burlesco, entre elas Simplicissimus, Jugend – Münchener Illustrierte Wochenschrift für Kunst & Leben e Die Lustigen Blätter. Aliás, um dos traços característicos da obra de Henrich Zille é a associação entre imagens e legendas, principalmente pautadas por expressões coloquiais ou mesmo em Berlinerisch, o dialeto berlinense. Tais imagens do meio ambiente proletário são combinadas, paratextualmente, com diálogos grosseiros, enunciados em dialeto. Desse modo, as legendas podem ser entendidas como comentários que acompanham a visão irônica, sarcástica e, às vezes, macabra de Zille acerca da miséria pungente nos pátios dos cortiços e nos casebres berlinenses da Era Guilhermina, ao caminhar pelas ruas munido de lápis e bloco de papel para registrar esboços do cotidiano de pessoas simples em sua luta diária por sobrevivência em uma metrópole em franca expansão, que produzia riqueza para poucos e miséria, para muitos. Tais esboços eram a base para a sua criação artística. De acordo com Maria Kotsev, “Zille havia desenvolvido um método que o impedia de ser notado enquanto desenhava. Dessa forma, as pessoas continuavam a agir sem disfarce e não tinham a sensação de que estavam sendo observadas” (KOTSEV, 2021).[III]

A vida e a obra de Heinrich Zille nos permitem considerá-lo um artista movido por forte senso de crítica social. Embora à primeira vista seus desenhos pareçam ser meras anedotas e peças humorísticas, uma análise acurada evidencia o comprometimento do artista em proporcionar ao público um olhar para a sociedade no Império e na República de Weimar a partir de um espelhamento crítico social. Cabe ressaltar que Zille veio de uma família pobre da classe trabalhadora e passou fome em meio à pobreza na infância, quando seus pais se mudaram para Berlim em 1867, vindos de Dresden, capital do estado de Sachsen (KOLBE, 2015). De tais vivências marcantes para sua formação como ser humano e artista, Zille sempre se mostrou atento às preocupações e sensibilidades das classes mais baixas na pirâmide social, conforme revelam as seguintes palavras em tom de crítica e escárnio perante os abastados: “‘Dos prazeres da gente rica, todavia, nós, pobres, sempre temos algo: dos cavalos a salsicha, dos charutos e cigarros as bitucas, das moscas as necessidades e dos automóveis o fedor’” (ZILLE apud KOLBE, 2015).[IV]

Heinrich Zille manteve-se socialmente comprometido durante toda a sua vida e defendeu os direitos dos excluídos e explorados em sua força de trabalho, que viviam à margem. Entre outros, o artista publicou os livros Kinder der Straβe (1908; Crianças da rua), Berliner Rangen (1908; Luta berlinense), Mein Milljöh (1913; Meu meio). Além de vários prêmios, Zille foi nomeado membro da renomada Academia Prussiana de Artes em 1924 (KOTSEV, 2021), cinco anos antes de sua morte. O jornalista Henning Onken apresenta, de maneira precisa, as transformações urbanas e sociais por que passara a capital do Reich desde meados do século XIX, das quais surgiriam aquele “Milljöh” do “Raffael dos cortiços” (Raffael der Hinterhöfe), como seus críticos o ridicularizavam:

Repetidas vezes, Zille incorporou nas imagens os tapumes dos canteiros de obras – ele residia em uma cidade que devorava a paisagem quase suprimindo as margens. Em 1929, ano de sua morte, viviam em Berlim quase quatro milhões de pessoas a mais do que em 1858, ano em que o artista nasceu. Uma dinâmica extrema. As necessidades de seus vizinhos, que viviam na miséria, em meio à sujeira e a condições precárias, também chamaram à atenção de Zille nas vitrines das agências funerárias: os caixões das crianças estavam expostos na frente. Até 1900, uma em cada cinco crianças não sobrevivia à infância. Viver e morrer na velha Berlim. (ONKEN, 2018)[V]

Das Zille-Buch
(1929; O Livro de Zille; org. Hans Ostwald,
em parceira com Heinrich Zille)
(https://www.abebooks.com/book-search/title/zillebuch/author/ostwald-hans-heinrich-zille/ )

Uma das principais fontes de nosso estudo é Das Zille-Buch (1929; O Livro de Zille), editado e publicado em coautoria com o escritor Hans Ostwald  (1873-1940), conforme indicado por Heinrich Zille, de próprio punho, no frontispício da obra: “Queridos amigos de minhas obras. Eu escrevi este livro juntamente com Hans Ostwald. É o único livro, no qual eu mesmo colaborei, sobre minha pessoa e minha carreira” (OSTWALD; ZILLE, 1929). Na “Introdução”, Hans Ostwald destaca o modo como o artista representava o “povo” em suas obras: “Com suas representações humorísticas, no entanto, ele [i.e., Heinrich Zille] não apenas transmitia pessoas miseráveis ​​e recantos miseráveis. Com total amor e plena consciência, ele também relatou a força do povo.” (OSTWALD, 1929)[VI] Cabe ressaltar que não foi fortuito a escolha de Hans Ostwald para essa parceria, autor do romance Vagabonden. Ein autobiographischer Roman (1900; Vagabundos. Um romance autobiográfico), baseado em seu diário, com anotações sobre suas vivências em ambientes miseráveis do submundo berlinense, além de ter se tornado um dos principais cronistas da precariedade da vida proletária na capital do Reich. A seguir, analisaremos duas obras de Heinrich Zille, que não se furtou a representar o proletariado pauperizado de Berlim em seus momentos de lazer.

Banhistas no Wannsee, em Berlim, e sua representação nos desenhos de Heinrich Zille

O Wannsee é um dos grandes lagos de Berlim, localizado no sudoeste da cidade. Em sua margem se situa uma das maiores praias de água doce da Europa. Há mais de um século, os moradores de Berlim e os turistas desfrutam de seus momentos de lazer, banhando-se em suas águas, ou praticando outras atividades, como velejar ou passear de barco, ou mesmo caminhar na orla. A praia do Wannsee foi inaugurada em 1907 e possui 1.275 metros de faixa de areia, sendo que 15% da área são reservados à FKK, Freie Körper Kultur, ou seja, o movimento naturista “Cultura do Corpo Livre”, adepto da prática do nudismo (OLOEW, 2007). O jornalista Matthias Oloew assim descreve os primórdios da liberação da praia do Wannsee para banho:

Pela primeira vez, o público em geral foi autorizado a assistir a banhos na Prússia, a ver todos tomando banho ao ar livre. As discussões não demoraram a acontecer, nem os regulamentos da polícia, que prescreveram exatamente como deveria ser o traje de banho para se usar no Wannsee. Os seios e o abdómen das damas tinham de estar cobertos, bem como as pernas até acima dos joelhos, enquanto aos cavalheiros era interditado o uso dos chamados calções de banho triangulares. (OLOEW, 2007) [VII]

Moradores da capital alemã, uma metrópole com milhões de habitantes, que não podiam pagar uma viagem para um dos sofisticados resorts do Mar Báltico, passaram a ter a oportunidade de tomar banho de sol e nadar com toda a família na Praia do Wannsee, a nova área de lazer local. Heinrich Zille não ficou alheio a essa novidade para os berlinenses e, poucos anos depois da inauguração da faixa de praia para banhistas, tratou de retratá-la em seus desenhos, sobretudo com seus visitantes de origem proletária. Entre eles, figuram “Berliner Strandleben” (A vida berlinense na praia) e “Freibad Wannsee” (Banho ao ar livre no Wannsee), ambos de 1912. A seguir, analisemos o primeiro deles:

Berliner Strandleben
(1912; Vida berlinense na praia)
Material: giz preto, aquarela e tinta opaca, 31,9 x 49,3 cm
(KUNST FÜR ALLE, s/d)
(https://www.kunst-fuer-alle.de/deutsch/kunst/kuenstler/kunstdruck/heinrich-zille/28498/1/556489/berliner-strandleben/index.htm)

Trata-se de uma visão panorâmica da praia do Wannsee, com várias pessoas de diversas faixas etárias, famílias, na areia, em primeiro plano, e várias outras pessoas se banhando nas águas do lago, no plano de fundo. Esse desenho de Heinrich Zille nos dá uma dimensão de como, cinco anos após sua inauguração, a praia do Wannsee havia se tornado local de lazer para muita gente, principalmente para moradores de Berlim que viviam em condições insalubres, em pequenas moradias de apenas um ou dois quartos, nos cortiços dos bairros proletários. Interessante ressaltar que o artista, mais uma vez, manifestou seu interesse em retratar não a burguesia e os abastados, mas a gente simples. Quanto à representação dos corpos, nota-se uma ampla variação entre magros e obesos, a maioria das crianças pequenas estão nuas, adolescentes usam maiôs com comprimento um pouco acima dos joelhos, as mulheres trajam maiôs compridos até os joelhos, enquanto os homens trajam ou maiôs, ou calções de banho. Nota-se, também que alguns homens estão usando chapéu tipo coco ou boina, usual de trabalhadores, uma mulher está usando touca de banho e outra, um chapéu com ornamentos florais.

Além disso, esse desenho de Heinrich Zille nos permite mais inferências diante de alguns aspectos. Constata-se, por exemplo, que são famílias com filhos pequenos, inclusive, uma mãe está amamentando um bebê, alguns trouxeram seus animais de estimação, e observa-se também um cesto contendo bebida e comida, um indício de que as pessoas se alimentavam no local, feito um piquenique. Um casal de idosos destoa dos demais, estão sentados em um banco e trajam roupas pesadas e inapropriadas para banho.

Por sua vez, ao fundo, podemos avistar embarcações à vela e as margens opostas do Wannsee. Enquanto a praia está tomada por pessoas humildes, oriundas da classe trabalhadora, burgueses desfrutam de seus momentos de lazer singrando as águas do lago com seus veleiros, ou mesmo em suas belas vilas ao redor do lago, longe da praia pública.

O segundo desenho de Heinrich Zille, Freibad Wannsee (Banho ao ar livre no Wannsee), selecionado para esta breve análise, guarda semelhanças com o desenho anterior. Mais uma vez, a praia do Wannsee e seus frequentadores são retratados. Trata-se de um desenho que ganhou publicidade também como ilustração de cartão postal, acompanhado de cinco paratextos: “Gruβ aus dem Künstler-Keller, Berlin-W., Jägerstr. 14” (“Saudação do Ateliê dos Artistas, Berlim-Wedding, Jägerstrasse 14”); “Wandmalereien von den Künstlern der ‘Lustigen Blätter’” (“Murais dos artistas das ‘Folhas Engraçadas’”); “Nr.2” (“nº 2); “H. Zille: Im Freibad Wannsee” (“Heinrich Zille: No banho ao ar livre, no Wannsee”); “Man sieht unmögliche Fassons von Waden – Wer’s nie im Leben tat: hier geht er baden.” (“Vê-se estilos impossíveis de vadear. – Aquele que nunca fez isso na vida: aqui ele vai se banhar.”).

Freibad Wannsee
(1912; Banho ao ar livre no Wannsee)
Material: giz preto e aquarela, 51,5 x 100.5 cm
(KUNST FÜR ALLE, s/d)
(https://www.kunst-fuer-alle.de/deutsch/kunst/kuenstler/kunstdruck/heinrich-zille/28498/1/557895/freibad-wannsee/index.htm )

Pelo menos, dois desses paratextos nos permitem precisar o contexto em que esse desenho foi feito: por um lado, entre outros periódicos, Heinrich Zille colaborava com desenhos e textos para a revista satírica Die Lustigen Blätter (As Folhas Engraçadas); por outro, o artista também produziu murais sob encomenda para diversos estabelecimentos populares de Berlim, como bares e restaurantes.

Entretanto, o seguinte paratexto, associado à imagem, reafirma o interesse que Heinrich Zille nutria por colocar sua obra à serviço da representação daqueles que, à margem da sociedade, estavam excluídos também como objeto para as artes plásticas. Guardadas as devidas proporções em relação a tempo e contexto, evidencia-se um contraste marcante dos desenhos de Zille ao serem comparados com obras famosas do pintor francês Georges Seraut, “Un dimanche après-midi à l’Île de la Grande Jatte” (1884; “Uma tarde de domingo na Ilha de Grande Jatte”) e, respectivamente, “Une baignade à Asnières” (1884; “Um banho em Asnières”), onde predominam representantes da burguesia ao tomarem banho de sol e se banharem nas águas do Sena. Ao contrário, conforme aponta Hans Ostwald na obra Das Zille-Buch, Heinrich Zille tinha uma sensibilidade aguçada para representar tipos humanos oriundos dos bairros proletários de Berlim:

Suas figuras, seus homens e mulheres proletários, suas crianças corajosas e raquíticas revivem do âmago. Eles não trazem apenas sua assinatura. Eles são experimentados no mais profundo da alma, no verdadeiro sentido da palavra. Em cada traço elas têm tudo o que um homem sobrecarregado de trabalho, uma mulher atormentada e abatida, um ser mal-humorado, uma criança infeliz e miserável sentem e experimentam. (OSTWALD; ZILLE, 1929) [VIII]

Em “Freibad Wannsee”, mais uma vez, temos a representação de pessoas simples e humildes, algumas famílias, mas com predomínio de adultos. A praia está lotada, alguns parecem estar usando trajes de noite, como se tivessem vindo de outro local, e outros estão vestidos com trajes de banho permitidos para a época, mas também maiôs bem curtos e calções se assemelhando a sungas, cujo uso era proibido pela polícia. Mais uma vez, destacam-se no plano de fundo o lago e sua margem oposta, e vê-se também um barco à vela em suas águas. Há também uma grande edificação na faixa de praia, parecendo ser um amplo galpão, talvez uma doca ou pavilhão.

Uma arte em prol da visibilidade de proletários e excluídos em seus momentos de lazer – à guisa de conclusão

De 09 de julho a 03 de outubro de 2017, foi realizada na Villa Liebermann, localizada às margens do lago, a exposição de arte “Streit am Wannsee – Von noblen Villen und Strandbadfreuden” (“Conflito no Wannsee – De nobres vilas e delícias do banho na praia pública”), que trazia por tema o conflito entre os proprietários de casas ao redor do Wannsee e frequentadores da praia, gerado nas primeiras décadas do Século XX. A referida exposição enfocou os diversos pontos de vista à luz das obras de artistas plásticos, entre eles Max Liebermann, Philipp Franck, Hugo Vogel, Paul Paeschke e Heinrich Zille. Um desses proprietários era o famoso pintor impressionista Max Liebermann (1847-1935), que, inclusive, apadrinhou Heinrich Zille em sua busca por inserção no então restrito meio artístico berlinense. Uma matéria não assinada, publicada na Gazette der Berlim em julho de 2017 por ocasião da divulgação da exposição, dimensiona com precisão tal conflito gerado a partir do afluxo de populares ao lago, outrora reduto exclusivo da burguesia e dos abastados berlinenses:

Pessoas barulhentas em busca de relaxamento versus moradores em busca de paz e sossego – uma disputa que se repetiu ao longo dos séculos. Conflitos também surgiram no tranquilo Wannsee – os proprietários das vilas, que queriam desfrutar da paz e tranquilidade de suas residências de verão aprazíveis, reclamaram dos visitantes barulhentos na praia do Wannsee. (STREIT AM WANNSEE, 2017) [IX]

Além disso, a referida matéria traz informações que nos auxiliam a entender o próprio acesso que as pessoas retratadas nos desenhos de Heinrich Zille possuíam, mesmo naqueles primeiros anos após a inauguração da praia pública às margens do lago Wannsee, em 1907:

Com a conexão de trem para o Wannsee, não só os moradores da colônia de vilas vinham para cá sem problemas. Muitos trabalhadores que moravam em apartamentos estreitos e mal iluminados também descobriram as vantagens das boas conexões de transporte público. A orla do Wannsee, com sua praia e muitas atrações turísticas, oferecia luz, sol e diversão no banho. O relaxamento e a distração perfeitos como contraponto a uma vida cotidiana sombria. (STREIT AM WANNSEE, 2017) [X]

Essa informação nos auxilia a entender como as pessoas humildes chegavam à praia do Wannsee para desfrutarem de um dia de sol, de relaxamento e de banho nas águas do lago com suas famílias. Isso não ocorria sem conflito com os moradores, incomodados com a invasão do “populacho” que quebrava a paz idílica dos abastados, certamente, que queriam manter seus “privilégios” e “poderes” intactos, ou seja, preservando a ordem social inalterada e a pobreza e a miséria, longe de suas vistas e ouvidos… E é exatamente isso o que a matéria publicada na Gazette em julho de 2017 anuncia:

Os moradores de “um dos lugares mais distintos e tranquilos para se viver perto de Berlim” não gostaram nada. Eles não ficaram sem ação e, assim, em 28 de janeiro de 1912, o Governo Imperial em Potsdam recebeu uma carta de quatro páginas na qual 28 proprietários de vilas do Wannsee, incluindo Max Liebermann, reclamaram das “condições dilaceradas” na margem oposta do lago. O barulho impossibilitava “a concentração mental ou o descanso”, segundo os denunciantes. (STREIT AM WANNSEE, 2017) [XI]

Exatamente em 1912, conforme menciona a matéria, o conflito se materializou em denúncia, naquele contexto em que Heinrich Zille produziu os dois desenhos aqui analisados e, portanto, tinham um potencial de impacto, seja sobre os leitores dos jornais satíricos, como o Die Lustigen Blätter, seja sobre os apreciadores dos postais do artista.

Por fim, segundo a matéria, a referida exposição “apresentou esses dois lados da vida no Wannsee, que não poderiam ser mais diferentes: por um lado, o Wannsee como um refúgio para a classe alta de Berlim e, por outro lado, como uma ‘banheira’ para as famílias da classe trabalhadora de Berlim” (STREIT AM WANNSSE, 2017).[XII] Frente a tal quadro, as obras de Heinrich Zille davam visibilidade àqueles que a burguesia e os abastados, sobretudo banqueiros, empresários e industriais, queriam invisibilizar e manter longe de seus domínios, incluindo neles o direito exclusivo ao lazer praticado às margens de um dos principais lagos da capital do Reich. Certamente, muita coisa mudou desde a criação da faixa de praia pública em 1907 e do conflito gerado nos anos seguintes. Todavia, a arte do “Raffael dos cortiços” nos revela o poder de engajamento crítico-social em prol de mudanças significativas nos fundamentos das estruturas econômicas e de poder que regem discriminatoriamente, inclusive, o âmbito do lazer.

Referências Bibliográficas

BRASCH, Anna S. Wortgeschichte zu Milieu. Zentrum für digitale Lexikographie der deutschen Sprache. 2021. Disponível em: https://www.zdl.org/wb/wortgeschichten/Milieu. Acesso em: 30 jul. 2022.

KOLBE, Corina. “Man kann mit einer Wohnung töten”: Zilles Berlin. Der Spiegel. 29 jan. 2015. Disponível em: https://www.spiegel.de/geschichte/heinrich-zille-fotografien-aus-dem-alten-berlin-a-1013931.html. Acesso em:26 jul. 2022.

KOTSEV, Maria. Der Mond über dem Milljöh: Heinrich Zille in Berlin. Der Tagesspiegel. 18 nov. 2021. Disponível em: https://www.tagesspiegel.de/kultur/heinrich-zille-in-berlin-der-mond-ueber-dem-milljoeh/27808900.html. Acesso em: 26jul. 2022.

MEDIENWERKSTATT. Heinrich Zille. s/d. Disponível em: http://www.medienwerkstatt-online.de/lws_wissen/vorlagen/showcard.php?id=15558. Acesso em: 30 jul. 2022.

MELO, Victor Andrade de. Esporte, lazer e artes plásticas: diálogos. Rio de Janeiro: Apicuri, 2009.

OLOEW, Matthias. Revolution in Badehosen. Der Tagesspiegel. 08 maio 2007. Disponível em: https://www.tagesspiegel.de/revolution-in-badehosen/844538.html. Acesso em: 29 jul.2022.

ONKEN, Henning. Leben und Sterben im alten Berlin: Heinrich Zille als Fotograf. Der Tagesspiegel. 25out. 2018. Disponível em: https://www.tagesspiegel.de/themen/berlinergeschichte/heinrich-zille-als-fotograf-leben-und-sterben-im-alten-berlin/22645138.html. Acesso em: 26jul. 2022.

OSTWALD, Hans. Einleitung. In: ZILLE, Heinrich; OSTWALD, Hans. Das Zillebuch. Berlin: Paul Franke Verlag, 1929. Disponível em: www.projekt-gutenberg.org/zille/zillebuc/zillebuc.html. Acesso em: 28 jul. 2022.

STREIT AM WANNSEE. Gazette. Berlim, jul. 2017. Disponível em: https://www.gazette-berlin.de/artikel/107-streit-am-wannsee.html. Acesso em: 28 jul. 2022.

STROHMEYER, Klaus. Die Berliner “Mietskaserne”. LEMO – Lebendiges Museum Online. 14 set. 2014. Disponível em: https://www.dhm.de/lemo/kapitel/kaiserreich/alltagsleben/mietskaserne.html. Acesso em: 30 jul.2022.

ZILLE, Heinrich; OSTWALD, Hans. Das Zillebuch. Berlin: Paul Franke Verlag, 1929. Disponível em: www.projekt-gutenberg.org/zille/zillebuc/zillebuc.html. Acesso em: 28 jul. 2022.

Notas

[I] Todas as traduções do alemão para o português são de nossa autoria. No original:

Zilles »Milljöh«, ist sprichwörtlich geworden, ist ein allgemein bekannter Begriff. Er umfaßt nahezu sein gesamtes Schaffen. Und Zille ist so volkstümlich geworden, weil er in seinem Werk immer unser Volk, unsere heimatliche Umgebung in ihren besten und oft belustigenden Erscheinungen gezeigt hat. Auch da, wo er als sozialer Warner und Schilderer auftrat, mußte man ihm oft beistimmen.

[II] No original:

Zille guckte dorthin, wo es wehtat. Er studierte das Leben der Berliner Arbeiterinnen und Arbeiter während der Industrialisierung, das „Berliner Milljöh“ und trieb sich dafür in Gassen, Kaschemmen und Arbeiterstuben herum.

[III] No original:

Zille hatte eine Methode entwickelt, durch die man ihn nicht beim Zeichnen bemerkt hat. So haben die Leute unverstellt weiteragiert und nicht das Gefühl gehabt, beobachtet zu werden.

[IV] No original:

“Von’s Vergnügen der reichen Leute ham wir Armen doch noch immer wat: von die Pferde die Wurscht, von die Zigarr’n und die Zigaretten die Stummel, von die Flieger die Notdurft un von die Automobile den Jestank”.

[V] No original:

Immer wieder hob Zille die hölzernen Bauzäune ins Bild – er lebte in einer Stadt, die sich an den Rändern fast knirschend in die Landschaft fraß. In Zilles Todesjahr 1929 lebten in Berlin fast vier Millionen Menschen mehr als 1858, dem Geburtsjahr des Künstlers. Eine extreme Dynamik. Die Nöte seiner in Elend, Schmutz und großer Enge lebenden Nachbarn fielen Zille auch in den Schaufenstern von Bestattern ins Auge: Kindersärge standen vorne an. Noch 1900 überlebte jedes fünfte Kind nicht das Säuglingsalter. Leben und Sterben im alten Berlin.

[VI] No original:

Er übermittelte aber mit seinen humorvollen Darstellungen nicht nur Elendsmenschen und Elendswinkel. Mit voller Liebe und mit vollem Bewußtsein berichtete er auch von der Kraft des Volkes.

[VII] No original:

Zum ersten Mal war dem breiten Publikum das Baden in Preußen erlaubt, in freier Natur von jedermann zu beobachten, ein Bad zu nehmen. Die Diskussionen ließen nicht auf sich warten und die Polizeiverordnungen auch nicht. Sie schrieben genau vor, wie die Badebekleidung auszusehen hatte, die am Wannsee zu tragen war. Bei den Damen hatten Brust, Bauch und die Beine bis über das Knie bedeckt zu sein, bei den Herren war es verpönt, so genannte Dreiecksbadehosen zu tragen.

[VIII] No original:

Seine Gestalten, seine proletarischen Männer und Frauen, seine kessen und seine rhachitischen Zillekinder leben aus dem Innern heraus. Sie sind nicht nur abgezeichnet. Sie sind im wahrsten Sinne des Wortes in tiefster Seele erlebt. Sie haben in jedem Strich alles das, was ein überarbeiteter Mann, eine abgehetzte, verhärmte Frau, ein verschnapstes Wesen, ein verkümmertes Unglückskind empfinden und erleben.

[IX] No original:

Lärmende Erholungssuchende gegen ruhesuchende Anwohner – ein Streit, der über Jahrhunderte immer wieder aufflammt. So kam es auch am ruhigen Wannsee zu Konflikten – die Villenbesitzer, die die Ruhe ihrer beschaulichen Sommersitze genießenwollten, beschwerten sich über die lärmenden Besucher im Strandbad Wannsee.

[X] No original:

Mit der Bahnverbindung Richtung Wannsee kamen nicht nur die Bewohner der Villenkolonie problemlos hierher. Auch viele Arbeiter, die in lichtarmen, engen Wohnungen hausten, entdeckten die Vorzüge der guten Verkehrsanbindung. Das Wannseeufer mit seinem Strandbad und den vielen Ausflugslokalen bot Licht, Sonne und Badespaß. Die perfekte Erholung und Ablenkung vom grauen Alltag.

[XI] No original:

Den Bewohnern eines „der vornehmsten und ruhigsten Wohnorte in der Nähe Berlins“ schmeckte das gar nicht. Sie blieben nicht untätig und so ging am 28. Januar 1912 ein vierseitiger Brief bei der königlichen Regierung in Potsdam ein, in dem sich 28 Wannsee-Villenbesitzer, unter ihnen auch Max Liebermann – über die „eingerissenen Zustände“ am gegenüberliegenden Wannseeufer, beschwerten. Der Lärm machte eine „geistige Konzentration oder ein Ausruhen unmöglich“, so die Beschwerdeführer.

[XII] No original:

[…] diese zwei Seiten des Lebens am Wannsee vorgestellt, die unterschiedlicher nicht sein konnten: einerseits der Wannsee als Rückzugsort für die Berliner Oberschicht andererseits als „Badewanne“ für Berliner Arbeiterfamilien.

O mundo circense e o jardim zoológico na pintura de August Macke

Recentemente, desenvolvemos um estudo sobre 30 obras do pintor expressionista alemão August Macke (1887-1914) que apresentam imagens associadas ao lazer e ao entretenimento, selecionadas no acervo digital disponível no portal Kunst für Alle (Arte para Todos) (CORNELSEN, 2021; CORNELSEN, 2022). Em nosso procedimento analítico, adotamos postura semelhante àquela proposta por Melo (2009, p. 22) ao estudar representações artísticas do esporte nas artes plásticas, ou seja, a intenção de partir das imagens: “Isto é, não se tratou de buscar obras que ilustrassem o que as fontes documentais informavam sobre os temas tratados, mas sim partir do que as imagens informavam, não só no que se refere ao tema, como também naquilo que dizia respeito à forma e ao contexto de representação”.

Dentre as atividades de lazer, presentes como tema em quadros e aquarelas pintados por August Macke entre 1911 e 1914, destacam-se as visitas a locais de entretenimento. Dentre eles, a seguir, analisaremos os seguintes, referentes ao mundo do circo e ao jardim zoológico: Circuswelt (1911; Mundo circense), Seiltänzerin (1913; Equilibrista na corda bamba), Cirkus (1913; Circo), Cirkusbild I – Kunstreiterin (1911; Imagem circense I – amazona), Kleiner Zoologischer Garten in Braun und Gelb (1912; Pequeno jardim zoológico em marrom e amarelo), e Zoologischer Garten (1912; Jardim Zoológico).

Iniciaremos nossa análise de quadros e aquarelas que apresentam imagens do mundo circense. O primeiro deles é, justamente, Circuswelt (1911; Mundo circense):

Circuswelt
(1911; Mundo circense)
Material: óleo sobre tela, 54,0 x 39,5 cm
(AGK-IMAGES, s/d)
(https://www.akg-images.de/archive/Circuswelt-I-2UMEBMBVYLWBN.html )

Antes de apontarmos os aspectos e detalhes que compõem a referida obra, cabe tecermos algumas conjecturas em torno do próprio tema: o mundo circense. De acordo com Coelho & Minatel (2011, p, 204), “o circo é um objeto social que tem um valor historicamente construído e que, todo tempo, busca uma identidade frente as mais diversas pressões sociais”. Estudiosos apontam suas raízes históricas na China, na Índia, na Grécia Antiga e em Roma. Segundo Torres (1998, p. 16), “o circo, como nós o conhecemos – um picadeiro, lonas, mastros, trapézios, desfiles, animais exóticos e suas jaulas, ‘isso para não citar a pipoca e o algodão doce’ –, é a forma moderna de antiqüíssimos entretenimentos de diversos povos e culturas”.

Sem dúvida, em termos históricos, o circo romano – com o Circus Maximus (séc. VI a.E.C.) – parece ser aquele que reuniria mais elementos e, ao mesmo tempo, cunharia o próprio termo “circo”, originado do grego kírkos (κρίκος) e do latim “circus” – grafado em alemão como Circus, Cirkus ou Zirkus –, que significa “circunferência” e alude, originalmente, tanto ao espaço da arena romana em que eram disputadas corridas de carruagens e travadas lutas entre gladiadores (COELHO & MINATEL, 2011, p. 207), quanto ao picadeiro, ou seja, à ala central do circo em que os artistas se apresentavam ou em que se realizavam exercícios de equitação. Posteriormente, o termo acabaria por assumir um significado mais amplo, como companhia artística que englobaria uma série de especialidades para compor o espetáculo, dentre elas o malabarismo, a acrobacia, o equilibrismo, o contorcionismo, o ilusionismo, o adestramento de animais, a adaptação de cenas teatrais e musicais, e a performance do riso e da alegria com a atuação de palhaços, figuras centrais no universo circense.

Por sua vez, desde a Antiguidade, o mundo circense passaria por transformações significativas. A maior delas, talvez, tenha se dado nas últimas décadas do século XVIII, conforme aponta Torres (1998, p. 16), em que um formato “clássico” de circo se estabeleceria:

Mas o circo como espetáculo pago, com picadeiro onde se apresentam números de equilíbrio a cavalo e habilidades diversas, é muito recente. Foi criado pelo suboficial inglês e perito cavaleiro Philip Astley (1742-1814), em 1770 para alguns, 1776 ou 1777 para outros historiadores. Ele deu a estrutura que o circo tem até hoje.

Teria sido, pois, Astley aquele que agregou às exibições equestres no Royal Amphitheatre of Arts (Anfiteatro Real das Artes) também exibições de acrobacia, de malabarismo, e de entretenimento do público através da performance de músicos e de palhaços. Entretanto, como nos lembra Henriques (2006, p. 2), “[c]onsiderando o ‘movimento circo’ como uma especialidade das artes onde o corpo é o protagonista, onde os artistas se expressam através de suas ações e gestos ensaiados, é possível considerar que a expressão humana ali representada antecede os próprios conceitos de circo ou artes do circo”.

Ainda sobre o advento do circo moderno, Emilia Silva (2010, p. 125) assevera que

[o] espetáculo artístico, voltado para o entretenimento que passou a ser denominado circo, surgiu da junção dos diversos artistas presentes em Londres no final do século XVIII com cavaleiros egressos da cavalaria real inglesa. Esse modo de organização de espetáculo, reunindo teatro, acrobacias, danças, música, bonecos e animais, entre outros, fez tanto sucesso que diversos grupos montaram seus espetáculos circenses e em passo acelerado iniciaram turnês por diversos países do mundo, a partir de 1762.

Outro aspecto relevante a se considerar é o próprio espaço do circo e a interação que se estabelece entre artistas e público na era moderna. De acordo com Ávila (2008, p. 17),

[a] atividade circense, como uma linguagem artística articulada na diferenciação espacial e construída socialmente, forma comunidades momentâneas em seus espetáculos, quase inconscientemente, que duram o tempo de sua apresentação ou o tempo que as pessoas se envolveram. Isso acontece tanto com os circos tradicionais que se apresentam dentro de suas lonas como com os grupos artísticos móveis que trabalham em lugares alternativos ou em teatros.

Posto isso, devemos considerar, ainda, os pressupostos para o advento e desenvolvimento do universo circense no contexto alemão. Embora já difundido desde o final do século XVIII, sobretudo pela atuação de companhias itinerantes familiares – Sarrasani, Renz, Busch etc., que formavam autênticas “dinastias circenses” (ROCHO, 2012, p. 577) –, o circo vivenciou seu florescimento por volta de 1900. Não é de estranhar, portanto, que ele tenha recebido atenção especial nas artes plásticas por pintores como o alemão August Macke e o russo Marc Chagall, um dos grandes nomes da pintura universal, que também expôs suas obras em Berlim e em Paris na década de 1910. O pioneiro do universo circense na Alemanha teria sido Ernst Jakob Renz (1815-1892), que teria fundado o Circus Renz em meados do século XIX e seria seguido pelo Circus Busch, fundado por Paul Vinzenz Theodor Busch (1850-1927) em 1884, com apresentações em várias cidades, entre elas, Berlim e Hamburgo, mas também na Áustria, especificamente em Viena.

Retomemos o quadro Circuswelt (1911; Mundo circense). Por sua datação, foi pintado em um período no qual o circo estava no auge, na Alemanha. Ao tomá-lo por tema em sua pintura, August Macke possibilita vê-lo enquanto fenômeno a partir de uma determinada perspectiva, que tem a ver tanto com o estilo do pintor – de transição entre o Impressionismo e o Expressionismo –, quanto com a seleção de elementos que o expressem. Circuswelt é um excelente exemplo disso, pois apresenta quatro grupos distintos: palhaços, acrobatas, animais (pássaros e cão) e público. O maior destaque recai sobre os palhaços, que ocupam posições distintas na tela e que estão representados em proporções diferentes, o que empresta certo senso de profundidade à cena. O mastro central em vermelho parece dividir a tela em dois quadrantes com níveis distintos: o quadrante esquerdo exibe o público na parte inferior da tela e, na parte superior, um músico segurando um bumbo, trajado e maquiado como palhaço, um cão, aparentemente, da raça poodle, e dois pássaros exóticos, aparentemente uma cacatua e uma arara; o quadrante direito exibe abaixo um palhaço com vestes e maquiagem distintas das do músico, e no plano elevado um casal de prováveis acrobatas, um homem musculoso trajando apenas uma sunga azul com contornos amarelos e uma mulher trajando um maiô amarelo. Centralizados entre os quadrantes, posicionados no mastro, figuram dois palhaços: o primeiro deles, trajando um terno marrom e segurando uma cartola, está entrelaçado ao mastro com o braço direito e as pernas, e parece ser aquele que reverencia o público e apresenta as atrações do circo; em proporções menores, o segundo está posicionado na parte superior do mastro, sentado em uma haste ou prancha e, pelo efeito de profundidade, permite a visualização de menos detalhes, como a calça amarela, a camisa verde e um gorro vermelho.

A descrição do quadro Circuswelt nos permite algumas conjecturas em relação ao lazer e ao entretenimento. Primeiramente, nota-se que August Macke intentou trazer duas dimensões do mundo circense: por um lado, a dimensão do espetáculo e, por outro, a dimensão do público, mesmo que este ganhe destaque menor em sua composição. A perspectiva do próprio quadro parece se posicionar mais próximo do que seria a visão da plateia para a cena que se descortina. Ao todo, seis figuras humanas compõem o público: quatro homens e duas mulheres, todos trajando vestes sociais, evidenciadas pelo predomínio de chapéus com arranjos para as mulheres e de chapéus coco ou palheta, para os homens. O olhar deles se volta para cima, contemplando o espetáculo, o que reforça o sentido de que público e artistas estão em níveis distintos, o que nos permite intuir que se trata de apresentação em um palco, e não em um picadeiro, argumento que pode ser justificado pela imagem do palhaço no quadrante direito, em primeiro plano, que desce os degraus de uma escada com corrimão e saúda o público. Outra escada parece conduzir ao nível em que se encontram os trapezistas, no quadrante direito, e o músico e os animais, no quadrante esquerdo. Há também uma cortina, à direita da trapezista, e um pano de fundo atrás do palhaço que está no topo do mastro, aparentemente, representando uma cena da natureza, com água, terra e céu. Bem ao estilo de Macke, o quadro é rico em cores e contrastes, com predominância de cores quentes – vermelho, laranja e amarelo, e em formas curvilíneas.

Antes de passarmos para a análise do próximo quadro, devemos ressaltar um aspecto: a composição do espetáculo circense retratada pictoricamente em Circuswelt. Conforme mencionado anteriormente, fora o público, três grupos distintos se destacam: palhaços, acrobatas e animais (pássaros e cão). Nota-se que os palhaços recebem maior destaque no quadro. Além de serem as figuras mais numerosas, são também aquelas que se distinguem entre si, como músico, como apresentador do espetáculo, como equilibrista e como clown propriamente dito, que permite representações de aparente estupidez e de astúcia que fazem o público rir. O riso e a alegria, pois, parecem dominantes no mundo circense, conforme representado por August Macke em sua pintura. Além disso, algo típico na atuação performática de palhaços é o uso de instrumentos musicais ou a execução de pequenas atividades artísticas que são integradas a uma trama cômica. Todos esses elementos encontram-se presentes em Circuswelt.

Além disso, outro elemento representado em Circuswelt, o mastro também era utilizado para acrobacias, bem como as barras horizontais, originárias do esporte. Já a atividade de adestramento como arte circense – representado no quadro pela cacatua, pela arara e pelo poodle – é variada, podendo englobar animais selvagens, como leões, tigres, leopardos, ursos, zebras e elefantes, ou também cavalos e pôneis, ou animais de menor porte, como pássaros, cães, gatos etc., e, em geral, estes são integrados a números cômicos.

Por sua vez, o casal de acrobatas não é representado performaticamente em Circuswelt, na execução de sua arte, mas postados. Poderia se especular que se trata de acrobatas que se apresentam juntos, em que um deles se equilibra com as mãos nas mãos, na cabeça ou em outra parte do corpo do outro, enquanto executa movimentos específicos.

Passemos, agora, ao segundo exemplo da presença do tema do mundo circense na pintura de August Macke, o quadro Seiltänzerin (1913; Equilibrista na corda bamba):

Seiltänzerin
(1913; Equilibrista na corda bamba)
Material: óleo sobre tela, 46,0 x 35,0 cm
(KUNST FÜR ALLE, s/d)
(https://www.kunst-fuer-alle.de/deutsch/kunst/kuenstler/kunstdruck/august-macke/345/134/556931/seiltaenzerin/index.htm )

Se comparado a Circuswelt, que apresenta o tema do mundo circense, o quadro Seiltänzerin, tanto visualmente quanto em relação ao paratexto principal, ou seja, o título, delimita o tema ao enfocar uma determinada arte circense: o equilibrismo, realizado como caminhada na corda bamba. Conforme se pode observar, na parte central da tela há a presença de uma equilibrista, usando maiô na cor verde, que caminha sobre uma corda de arame esticada no alto e utiliza como auxílio para equilibrar-se uma longa barra.

Para além da figura tema do quadro, alguns detalhes chamam à atenção em Seiltänzerin. Um deles é a presença do público, que é retratado em pé e de costas ao contemplar a performance da equilibrista. Desta feita, as vestes não parecem ser tão formais quanto em relação ao público representado em Circuswelt. Talvez, isso se deva à distinção entre os espaços: enquanto, em Circuswelt, há a representação do universo circense no palco, em um recinto fechado, em Seiltänzerin evidencia-se que se trata de uma apresentação em um circo, com suas traves de sustentação e com a lona, que está erguida ao fundo e permite a visualização de casas e telhados coloridos na parte externa. Em termos estéticos, predominam os traços retilíneos – mastros, postes de sustentação, barra de equilíbrio, casas e telhados etc. – e predomina certa luminosidade, pela escolha de cores quentes – vermelho, laranja e amarelo, no centro e no fundo da tela, e de cores frias – azul, violeta e violeta azulado, no primeiro plano, em que se encontra o público. Mais uma vez, August Macke ressalta, imageticamente, a associação entre espetáculo e público, entre arte circense e espectadores que desfrutam de seus momentos de lazer e buscam por entretenimento.

O terceiro exemplo da representação pictórica do tema do circo na pintura de August Macke é Cirkus (1913; Circo):

Cirkus
(1913; Circo)
Material: óleo sobre tela, 47,0 x 63,5 cm
(KUNST FÜR ALLE, s/d)
(https://www.kunst-fuer-alle.de/deutsch/kunst/kuenstler/kunstdruck/august-macke/345/287/144192/zirkus/index.htm )

Mais uma vez, temos uma cena circense em um espaço de picadeiro. Diferindo dos dois exemplos anteriores, não há a presença de público. Talvez, seja a representação de uma cena de exercício antes do espetáculo, com fim trágico: o acidente de uma amazona ao cair de sua montaria. Desde a segunda metade do século XVIII, a equitação artística ganhou espaço dentre as atrações circenses. Uma de suas modalidades é praticada por uma figura feminina, conforme a representada no quadro, que se exibe equilibrando-se em diversas posições sobre o cavalo em movimento circular.

Em Cirkus, há seis figuras humanas, sendo que quatro delas se destacam no centro do quadro: três figuras masculinas, que exibem trajes diversos, podendo ser malabaristas ou equilibristas, ou mesmo auxiliares do circo, que carregam a amazona, a qual parece sangrar pela boca após sofrer a queda do belo cavalo branco com cela vermelha, que é conduzido para fora da lona por outra figura; a quinta figura é a de um homem em primeiro plano, que está sentado de costas, podendo ser o diretor do circo, como se lamentasse o ocorrido.

A composição espacial da cena também nos permite certas inferências: no picadeiro, há uma cadeira, que poderia ser a do diretor ao observar o exercício de equitação, mas que está vazia, pois este está sentado na beirada do picadeiro; as lonas sustentadas por quatro traves, duas a duas cruzadas, parecem estar arreadas, o que legitima a impressão de que se trate de exercício antes do espetáculo propriamente dito, bem como pela ausência de público. Em termos estéticos, predominam traços curvilíneos – lonas, picadeiro, cavalo, figuras humanas etc., de modo semelhante ao quadro Circuswelt, sobre traços retilíneos – cadeira, traves de sustentação, e as cores dominantes são as quentes – vermelho, laranja e amarelo, o que empresta luminosidade à cena.

Por sua vez, o quarto e último exemplo da presença temática do universo circense como representação do lazer e do entretenimento na pintura de August Macke é Cirkusbild I – Kunstreiterin (1911; Imagem circense I – amazona):

Cirkusbild I – Kunstreiterin
(1911; Imagem circense I – amazona)
Material: óleo sobre papel e tela, 47,0 x 63,0 cm
(KUNST FÜR ALLE, s/d)
(https://www.kunst-fuer-alle.de/deutsch/kunst/kuenstler/kunstdruck/august-macke/345/59/561405/circusbild-i:-kunstreiterin/index.htm )

A obra Cirkusbild I – Kunstreiterin, pintada dois anos antes de Cirkus, por seu título, indica que se trata de uma primeira imagem temática de um ciclo de obras dedicadas ao universo circense. Se no quadro de 1913 há um sentido trágico e disfórico na representação pictórica da amazona que sofreu um acidente ao cair da montaria em um exercício de equitação e equilíbrio, no quadro de 2011, a amazona é representada em toda a sua exuberância, sentada em posição de equilíbrio sobre o cavalo, cruzando as pernas e segurando uma pequena vara para equilibro e comando, e trajando vestes típicas de bailarinas. O conjunto formado pelo cavalo e pela amazona domina o espaço no centro do quadro. Já o picadeiro e sua pequena murada determinam a separação entre o espetáculo e o público. Enquanto o cavalo e a amazona se movimentam dentro do picadeiro, sobre a murada, do lado esquerdo da tela e em primeiro plano, estão de pé duas figuras masculinas, uma delas parecendo ser um clown, de fraque verde, calça azul e calçado bege, e que segura nas mãos uma cartola vermelha amassada, e outro esguio, vestido com um collant verde e sunga cinza, e com calçados cinzas, como se fossem sapatilhas, podendo ser um equilibrista ou malabarista. Ambos parecem interagir com a amazona e com o público, retratado em primeiro plano, na parte inferior e esquerda da tela – três homens e duas mulheres em trajes sociais, – e também no fundo, do lado oposto, depois dos bastidores representados pelas cortinas verdes levantadas, da qual vem mais um clown, proporcionalmente pouco definido, com veste em cor marrom, talvez um macacão, e gorro vermelho. Mais uma figura é reconhecível na parte direita da tela: um homem vestido com camisa branca, fraque e calça preta, com gravata borboleta, parecendo ser um garçom, que segura uma bandeja na mão direita e caminha na lateral da murada do picadeiro, onde está a plateia.

Em Cirkusbild I – Kunstreiterin, a plateia requer atenção especial, pois sua representação se diferencia daquela das obras Circuswelt e, respectivamente, Seiltänzerin: pela primeira vez, o espaço circular do picadeiro e das cadeiras é visualmente apresentado, sendo que o público no primeiro plano é retratado como se interagisse, humoradamente, com as duas figuras masculinas postadas na murada do picadeiro, que as interpelam, enquanto o público numeroso no plano de fundo contempla a cena e indica que o circo está lotado. Em termos estéticos, predominam traços circulares e cores quentes – vermelho, laranja e amarelo, que emprestam luminosidade à cena de equitação e equilíbrio da amazona sobre o cavalo.

Portanto, esse conjunto composto por quatro obras de August Macke, que têm por tema o circo e seu universo, em seu caráter documental, nos permite refletir sobre essa prática no âmbito dos Estudos do Lazer. Como apontam Coelho & Minatel (2011, p. 204), “[d]esde quando emerge, o circo se constitui de práticas que concentram fortes conteúdos pedagógicos. No universo da Educação Física, o circo tem sido um tema pouco explorado, apesar de estar incluído nas manifestações da cultura corporal do movimento”.

Para além da representação pictórica do tema do universo circense na pintura de Auguste Macke, que nos permite reflexões sobre lazer e entretenimento, consideramos neste estudo também outro espaço: o do jardim zoológico. A primeira obra a ser analisada é Kleiner Zoologischer Garten in Braun und Gelb (1912; Pequeno jardim zoológico em marrom e amarelo):

Kleiner Zoologischer Garten in Braun und Gelb
(1912; Pequeno jardim zoológico em marrom e amarelo)
Material: óleo sobre tela, 47,0 x 96,0 cm
(KUST FÜR ALLE, s/d)
(https://www.kunst-fuer-alle.de/deutsch/kunst/kuenstler/kunstdruck/august-macke/345/227/132436/kleiner-zoologischer-garten-in-braun-und-gelb/index.htm )

De acordo com o artigo publicado pela Associação de Jardins Zoológicos (Verband der Zoologischer Gärten – VdZ), da Alemanha, assim como o circo, o zoológico possui uma história de alguns milênios, que remonta à Antiguidade, ao Egito ou à China. Os faraós veneravam alguns animais selvagens como divindades, que eram mantidos para fins militares ou de instrumentos de caça, dentre eles, antílopes, girafas e elefantes. Outro exemplo é o do imperador chinês Wen-Wang, que mantinha um “Parque do Saber” por volta de 1150 a.E.C., no qual viviam tigres, rinocerontes, antas e cobras gigantes (VERBAND, s/d).

Na Roma antiga, a manutenção de animais selvagens também desempenhava um papel importante, sobretudo para lutas e exibições em arenas, como o Circus Maximus, ou em anfiteatros em territórios conquistados ao Norte dos Alpes – em Colônia, Mainz, Trier e Xanten. Com a queda do Império Romano no séc. V, durante um longo período, tornou-se rara a presença de animais selvagens e exóticos na Europa. Somente na época das Cruzadas e das primeiras viagens empreendidas ao Oriente, nos séculos XII e XIII, é que animais selvagens voltariam a ser trazidos para a Europa e mantidos em zoológicos improvisados, em parques e jardins de palácios, para entretenimento da nobreza, e para demonstração de poder e riqueza. No âmbito do território alemão, o imperador Frederico II (1194-1250), soberano do Sacro Império Romano Germânico, ordenou a construção dos primeiros grandes zoológicos na Idade Média (VERBAND, s/d).

Certamente, já na Era Moderna, um zoológico real, construído no Palácio de Versalhes no período de reinado de Luis XIV (1628-1715), tornou-se modelo para criações de animais selvagens em outras cortes. Projetada pelo próprio rei, a Menagerie (palavra francesa para “zoológico”) apresentava no centro um pequeno palácio em estilo barroco, ao qual eram anexados sete cercados de animais diversos. Tal instalação serviu de modelo para a construção do Zoológico de Viena, localizado na área do Palácio de Schönbrunn, o mais antigo jardim zoológico do mundo ainda existente, inaugurado em 1752. Embora, inicialmente, a instalação destinasse ao interesse científico do Imperador Francisco I (1768-1835) e à recreação da família real austríaca, já em 1779 o Zoológico de Viena foi aberto ao público para visitação com entrada gratuita (VERBAND, s/d.).

Todavia, no século seguinte, foram construídos vários zoológicos na Europa, vistos também como locais de recreação e de ensino de história natural, não mais associados, necessariamente, a espaços da nobreza, pois propunham a divulgação do conhecimento científico entre a população em geral. O primeiro deles foi inaugurado em Londres, em 1828, com uma coleção de animais para estudo científico, chamado pela primeira vez de “Jardim Zoológico”. Em 1844, o primeiro zoológico na Alemanha foi inaugurado em Berlim. O primeiro zoológico da Suíça surgiu na Basiléia em 1874. Já na virada do séc. XIX para o séc. XX, havia mais de 20 zoológicos e aquários públicos na Alemanha (VERBAND, s/d.).

No período em que August Macke estava produzindo suas obras, dois outros zoológicos foram construídos na Alemanha: Hagenbeck em Hamburgo, fundado em 1907, e Hellabrunn em Munique, fundado em 1911. É provável que o pintor tenha conhecido este último, pois costumava passar períodos de veraneio em estações de águas às margens do Lago Tegern (Tegernsee), na Baviera. Inovador no Zoológico de Munique foi o fato de que os animais eram expostos com a maior liberdade possível. Assim, as jaulas e gaiolas com pouco espaço para movimentação foram substituídas por áreas maiores, gradeadas e com cenários artificiais ou com paisagens e vegetação adequada ao habitat natural dos animais e pássaros (VERBAND, s/d.).

Algo semelhante pode ser notado na obra Kleiner Zoologischer Garten in Braun und Gelb, pintado um ano após a inauguração do Zoológico de Hellabrunn, em Munique: a ausência de grades ou jaulas. Uma arara, um flamingo e um elefante se destacam nesse quadro, sendo que a arara se destaca dos demais por suas cores vivas. O elefante em tom verde escuro ocupa a parte central do quadro, em uma cena outonal, representada pela copa de uma das árvores em cores quentes – laranja e amarelo, o que produz luminosidade na parte superior esquerda, diferindo do predomínio de cores frias – marrom em tons claros e escuros, que predominam na parte inferior do quadro, onde figuram os visitantes do jardim zoológico, sete figuras humanas, sendo seis homens e uma mulher, que formam três duplas, enquanto o homem em destaque no primeiro plano está sozinho e é o único que apresenta detalhes faciais (nariz, olhos e boca). Todos exibem trajes sociais, com predominância do tom marrom para as vestes masculinas, com exceção de um dos homens, que esta com casaco verde com detalhes amarelos e com um chapéu coco também verde, acompanhado da única mulher na cena, que exibe um chapéu marrom com um arranjo em tom azul e branco, que combina com seu vestido azul. A dupla de homens do lado direito parece contemplar o flamingo, enquanto outra dupla do lado esquerdo está conversando. Já o cavalheiro solitário em primeiro plano está com ar melancólico e não contempla os animais.

Portanto, a obra Kleiner Zoologischer Garten in Braun und Gelb, cujo predomínio de cores é indicado no título – marrom e amarelo, e cujos contornos dos elementos que o compõem são pouco acentuados, apresenta o tema do jardim zoológico como local de sociabilidade e de lazer, mas também de conhecimento. Outro quadro de August Macke, igualmente pintado em 1912, apresenta semelhanças – Zoologischer Garten (Jardim Zoológico):

Zoologischer Garten
(1912; Jardim Zoológico)
Material: óleo sobre tela, 59,0 x 98,0 cm
(KUNST FÜR ALLE, s/d)
(https://www.kunst-fuer-alle.de/deutsch/kunst/kuenstler/kunstdruck/august-macke/345/1/560406/zoologischer-garten-i/index.htm )

Em termos estéticos, constata-se que o quadro Zoologischer Garten, pintado em 1912, se apresenta com fortes traços do Expressionismo, tanto em relação à definição de contornos, quanto em relação ao emprego de cores. Nele, é possível identificar alguns pássaros – uma arara, em destaque no lado esquerdo, um flamingo ao fundo, uma cacatua do lado direito, junto à qual há outro pássaro não identificado, e um cervo em primeiro plano, à direita, que está próximo de um dos visitantes do zoológico, um homem vestido com terno amarelo e usando chapéu coco em tons amarelo e vermelho. Além dele, visualiza-se no centro da tela outras três figuras humanas – homens em trajes sociais, igualmente vestidos com terno em tom azul e usando chapéu coco na mesma coloração.

Outro aspecto que pode ser notado no quadro Zoologischer Garten, que o difere de Kleiner Zoologischer Garten in Braun und Gelb, é a presença de grades em forma de cercados, que separam os animais e pássaros dos caminhos em que os visitantes transitam, bem como do lago em que se encontra o flamingo. Ao fundo, é possível reconhecer uma construção na cor branca, parecendo ser uma torre, sem que se possa identificar com precisão seu significado para a composição do tema. A vegetação representada pela copa de árvores, sobretudo na parte superior da tela, se expressa com cores quentes – amarelo – e frias – verde e azul escuro. O solo, ao contrário, é representado com cores quentes – amarelo e, principalmente, vermelho.

Ambos os quadros que têm por tema a visitação de jardins zoológicos se associam também aos quadros que representam cenas do universo circense no modo como integram tanto as atrações – os animais e pássaros nos jardins zoológicos, e os artistas circenses e animais no universo do circo, quanto aqueles que desfrutam de suas horas de lazer e buscam entretenimento – a platéia no circo e os visitantes no zoológico. Nota-se que, nas obras de August Macke, analisadas neste estudo, predomina certa formalidade expressada na forma como as pessoas se vestiam para ir a esses espaços, com predomínio de figuras masculinas. Certo é que, para o pintor, que faleceria prematuramente em setembro de 1914, ao ser morto em batalha na França, aos 27 anos de idade, aqueles anos que antecederam ao morticínio da Primeira Guerra Mundial representaram um período de intensa produtividade artística, em que telas, tintas e pincéis lhe permitiram empregar contornos e cores a cenas que exibiam as pessoas em atividades de lazer e de promoção de entretenimento artístico e cultural, apesar dos tempos sombrios em que viviam.

Referências Bibliográficas

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ÁVILA, Fernando Silva de. Território circense. 2008. Dissertação, Presidente Prudente, SP: Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Tecnologia, 2008. Disponível em: http://hdl.handle.net/11449/96698 . Acesso em: 16 abr. 2022.

COELHO, Marília; MINATEL, Roseane. Circo: a arte do riso e prática de reconstrução social. Topos. v. 5, n. 1, p. 203-230, 2011. Disponível em: https://revista.fct.unesp.br/index.php/topos/article/view/2278. Acesso em: 20 abr. 2022.

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CORNELSEN, Elcio Loureiro. O velejar como lazer e sua representação na pintura de August Macke. Historia(s) do SPORT (Blog). Rio de Janeiro, 21 fev. 2022. Disponível em: https://historiadoesporte.wordpress.com/author/elcornelsen/. Acesso em: 20 abr. 2022.

KUNST FÜR ALLE, Bilder von August Macke, s/d. Disponível em: https://www.kunst-fuer-alle.de/deutsch/kunst/bilder/kuenstler/August+Macke/345/1/index.htm. Acesso em: 06 dez. 2021.

MEISTERDRUCKE. Bilder von August Macke, s/d. Disponível em: https://www.meisterdrucke.pt/artista/August-Macke.html. Acesso em: 06 dez. 2021.

MELO, Victor Andrade de. Esporte, lazer e artes plásticas: diálogos. Rio de Janeiro: Apicuri, 2009.

ROCHO, Lara. Para além do picadeiro… O Circo Universal e o uso dos espaços urbanos pela arte circense em Porto Alegre no século XIX. Anais do XII Encontro Estadual de História (ANPUH-RS). Rio Grande, RS: Universidade Federal do Rio Grande (FURG), p. 574-584, 2012. Disponível em: http://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/18/1346381906_ARQUIVO_TEXTOANPUH2012.pdf. Acesso em: 20 abr. 2022.

SILVA, Ermínia. A teatralidade circense no Rio de Janeiro do século XIX. In: MARZANO, Andréa; MELO, Victor Andrade de (org.). Vida divertida: histórias do lazer no Rio de Janeiro (1830-1930). Rio de Janeiro: Apicuri, 2010, p. 125-151.

TORRES, Antonio. O Circo no Brasil. Colaboração Alice Viveiros de Castro e Márcio Carrilho. Rio de Janeiro, RJ: Editora Funarte e Atração ed. Ilimitadas, 1998.

VERBAND der Zoologischer Gärten e. V. Kurze Geschichte der zoologischen Gärten. s/d. Disponível em: https://www.vdz-zoos.org/wissenswertes/historie-von-zoos. Acesso em: 20 abr. 2022.

Imagens do lazer na pintura de August Macke

Elcio Loureiro Cornelsen

August Macke (1887-1914) é um dos grandes nomes do Expressionismo alemão nas artes plásticas. Uma das características de sua pintura é a preferência temática por ambientações ao ar livre, em parques, bosques e lagos, em que pessoas são retratadas em diversas atividades, incluindo as de lazer e entretenimento. Em estudo recente, a partir de um conjunto de 30 obras analisadas, selecionadas a partir do acervo digital disponível no portal Kunst für Alle (Arte para Todos), pudemos classificá-las de acordo com as seguintes atividades:

a) banhistas no lago ou na praia: Badende am grünen Abhang (1910; Banhistas na encosta verde), Badende Frauen I (1913; Mulheres banhistas I), Badende Frauen II (1913; Mulheres banhistas II), Badende Frauen mit Stadt im Hintergrund (1913; Mulheres banhistas com cidade ao fundo), Picknick am Strand (1913; Piquenique na praia);

b) pessoas passeando: Frauen beim Spaziergang (1913; Mulheres no passeio), Leute am blauen See (1913; Pessoas no lago azul), Paar im Park (1914; Casal no parque), Park am Wasser (1913; Parque às margens do lago), Promenade (1914; Passeio), Reiter und Spaziergänger in der Allee (1914; Cavaleiro e cidadão passeando na alameda), Schlafende Reiter (1910; Cavaleiros dormindo), Spaziergang auf der Brücke (1912; Passeio na ponte), Spaziergang im Park (1914; Passeio no parque), Spaziergänger am See (1912; Pessoas passeando nas margens do lago), Spaziergänger im Park (1913; Pessoas passeando no parque), Spaziergänger unter Bäumen (1913; Pessoas passeando debaixo de árvores);

c) pessoas em locais de convívio: Gartenrestaurant (1912; Restaurante ao ar livre), Wirtshausgarten (1913; Taverna ao ar livre);

d) visitas a locais de entretenimento: Circuswelt (1911; Mundo do circo), Seiltänzerin (1913; Equilibrista na corda bamba), Cirkus (1913; Circo), Cirkus – Kunstreiterin (1911; Circo – amazona), Kleiner Zoologischer Garten in Braun und Gelb (1912; Pequeno jardim zoológico em marrom e amarelo), Zoologischer Garten (1912; Jardim Zoológico);

e) velejadores: Segelboot am Morgen (1910; Veleiro de manhã), Am Thuner See Picknick nach dem Segeln (1913; Piquenique junto ao Lago de Thun após velejar), Ansicht vom Tegernsee (1910; Vista do Lago Tegern), Segelboot auf dem Tegernsee (1910; Veleiro no Lago Tegern), Gelbes Segel (1913; Vela amarela), Hilterfingen am Thuner See (1914; Hilterfingen às margens do Lago de Thun).

Nos títulos de algumas obras destacam-se dois topônimos: o Tegernsee (Lago Tegern) e o Thuner See (Lago de Thun). Enquanto o primeiro se localiza na Baviera e pertence a um ciclo de estação de águas, tendo às suas margens cidades e vilarejos como Egern, Staudach, Rottach, Bad Wiessee e Tegernsee, o segundo é um lago alpino situado no cantão suíço de Berna, tendo às suas margens cidades e vilarejos como Oberhofen, Gunten, Merligen, Darligen, Hilterfingen, entre outros. Ambos têm como característica comum o fato de serem, ainda em nossos dias, locais de veraneio, visitados pelo pintor no início do século XX, inclusive, vindo a residir em Hilterfingen às margens do Lago Thun no outono de 1913, e também por alguns meses, em 1910, em Tegernsee. Essa ligação com a natureza, pressupõe-se, tem a ver com certos aspectos da vida de August Macke, nascido em 03 de janeiro de 1887 na pequena cidade de Meschede, na região montanhosa de Sauerland, na Renânia, que cresceria em Bonn (WALTHER; IMWOLDE, 2014), celebre cidade natal de Ludwig van Beethoven, que, pouco mais de meio século mais tarde, se tornaria a capital da Alemanha Ocidental. Não parece ser fortuito o fato de que paisagens urbanas – o mundo fabril ou das inovações técnicas, por exemplo – sejam pouco frequentes em suas obras, embora Macke, já adulto, tenha viajado algumas vezes para Paris e outras cidades européias, e também tenha residido em 1908, em Berlim, durante sua formação no ateliê do pintor impressionista alemão Lovis Corinth.

Selbstporträt mit Hut
(1909; Auto-retrato com chapéu)
Material: óleo sobre madeira, 41,0 x 32,5cm
(KUNST FÜR ALLE, s/d)
(https://www.kunst-fuer-alle.de/deutsch/kunst/kuenstler/kunstdruck/august-macke/345/152/113958/selbstportraet-mit-hut/index.htm )

Nota-se também pela datação das obras que o maior período de produtividade artística de August Macke se situa entre os anos 1910 e 1914, abrangendo a totalidade das 30 obras do conjunto analisado, sendo que o ano de 1913 se destaca dos demais com 14 obras. Se pensarmos em termos de contexto, é interessante notar que a iminência da guerra que eclodiria em agosto de 1914 deixou poucos vestígios em suas obras. Todavia, o próprio pintor seria uma das primeiras vítimas da guerra, morto em 26 de setembro de 1914, em batalha travada ao sul da cidade de Perthes-lès-Hurlus, na região francesa de Champagne, sem ter completado sequer dois meses após a convocação para integrar o Regimento de Infantaria nº 160 e ser enviado ao front na patente de oficial adjunto, aos 27 anos de idade, pois, desde 1909, quando prestou o serviço militar, era soldado da reserva. Aliás, seis dias antes de morrer, foi promovido a oficial e recebeu a Cruz de Ferro, condecoração por atos de bravura (WALTHER; IMWOLDE, 2014). Embora tenha falecido cedo, Auguste Macke produziu mais de 10.000 desenhos e croquis, 500 quadros e 500 aquarelas (BORNEMANN, 2017), várias delas retratando pessoas no cotidiano, sempre com cores intensas e formas que se distanciam da realidade objetiva, sem, entretanto, recair no abstracionismo, salvo algumas exceções.

Sem dúvida, August Macke foi influenciado por diversos artistas plásticos contemporâneos da vanguarda europeia, algo que emprestou ao seu estilo um caráter singular e eclético. Formado na Academia Real de Arte de Düsseldorf em 1905, Macke faria amizade com diversos artistas nos anos seguintes, dentre eles Franz Marc, um dos principais nomes de “O Cavaleiro Azul” (Der Blaue Reiter), movimento artístico de Munique, que, aliás, teria o mesmo destino trágico de Macke, ao ser morto em Gussainville, em 04 de março de 1916, durante a Batalha de Verdun. Em 1911 e 1912, August Macke participou das exposições do grupo (BORNEMANN, 2017). Outros artistas plásticos que o influenciaram foram o expressionista Paul Klee e o fauvista Robert Delaunay, além de Henri Matisse, Marc Chagall, Louis Moilliet e Wassily Kandinsky.

Além disso, August Macke é considerado um grande mestre das cores, que expressa em suas pinturas e aquarelas um mundo colorido e alegre. Nos primeiros anos de sua produção artística, seu estilo evidenciava traços do impressionismo, mas que seriam atualizados, posteriormente, com elementos do futurismo, do cubismo e do fauvismo, sobretudo na crescente simplificação das formas (BORNEMANN, 2017). Suas pinturas concentram-se em expressar emoções, e alguns motivos recorrentes se fazem presentes em sua obra, entre outros, retratos, paisagens, naturezas mortas, e pinturas de nus. Nota-se, também, que seu estilo pessoal é marcado pelo trabalho com efeitos de luz e pelo emprego de cores puras, reluzentes e harmoniosas. Seus quadros satisfazem o anseio por imagens positivas de um mundo intacto, fazendo jus à harmonia das pessoas com as coisas que as cercam, conforme o próprio pintor certa vez definiu sua arte: um “canto à beleza das coisas” (Gesang von der Schönheit der Dinge) (citado in DEUTSCHE WELLE, 2015). Aliás, a principal modelo para retratos foi sua esposa, Elisabeth Gerhardt, com quem casou-se em 1910, retratada pelo pintor em mais de 200 obras.

A título de exemplo de análise, selecionamos cinco obras, todas associadas a pessoas passeando a pé: Spaziergänger am See (1912; Pessoas passeando nas margens do lago), Spaziergang auf der Brücke (1912; Passeio na ponte), Frauen beim Spaziergang (1913; Mulheres no passeio), Spaziergang im Park (1914; Passeio no parque), e Promenade (1914; Passeio).

Todavia, cabe-nos ainda tecer algumas conjecturas sobre o lazer para entendermos o modo como ele é considerado para efeito de análise. No belíssimo estudo do historiador Victor Andrade de Melo, intitulado Esporte, lazer e artes plásticas: diálogos (2009), encontramos subsídios que nos permitem trilhar esse caminho analítico a partir do pressuposto de que lazer e esporte são fenômenos da modernidade:

Nesse cenário, o lazer, nova configuração da diversão no âmbito desse conjunto de mudanças, será impregnado por toas as dimensões do ideário da modernidade em construção e tempo/espaço cada vez mais estratégico para a conformação dos novos ditames sociais ao captar e expressar, incorporar e ressignificar as tensões do processo. (MELO, 2009. p. 17)

Uma das principais referências no estudo de Victor Andrade de Melo ao tomar obras de arte como fontes históricas é o historiador francês Alain Corbin, que associa o lazer ao tempo livre: “O burguês aparece ‘em grande medida como o homem com tempo livre’. E isto, mais uma vez, não quer dizer que se trate de um ocioso, longe disso: ele tenta, como os seus contemporâneos, evitar o vazio das horas.” (CORBIN apud MELO, 2009. p. 17). O que observaremos a seguir é, justamente, o poder da arte em incorporar e produzir imagens de uma dada atividade específica, em um momento de emergência e valorização do lazer: o ato de passear como modo de preencher o “tempo livre” e de “evitar o vazio das horas”.

Como bem ressalta Carlos Gonçalves Terra, “[o] ‘prazer do lazer’, em diversas épocas, pode ser conhecido pela observação de várias obras da pintura, em que a realidade fica materializada pela mão de um determinado artista” (TERRA, 2010, p. 78). Este é o caso do ato de passear e seu destaque na obra de August Macke, que pode ser pensado como algo associado a uma série de momentos em dados espaços propícios para isso, como parques e jardins: “Também os parques públicos, que surgem a partir do século XIX, e os jardins particulares, proporcionarão momentos agradáveis quer pelos passeios, pelas conversas ou pelo contato com a natureza” (TERRA, 2010, p. 78-79).

Por sua vez, em um estudo dedicado à história cultural do ato de passear a pé como uma prática burguesa do século XIX, Gudrun M. König (1996, p. 38), inicialmente, distingue entre o “passeio solitário” (einsamer Gang) e o “passeio público” (öffentliche Promenade). Mais que uma atividade ao ar livre, em meio à natureza, o ato de passear a pé tornou-se, ao longo do século XIX, parte do comportamento burguês no espaço público, como “nova forma de sociabilidade” (neue Form öffentlicher Gesellung) (KÖNIG, 1996, p. 222). Todavia, cabe ressaltar que, em termos etimológicos, a palavra alemã Spaziergang (passeio a pé) se origina do italiano spaziare (expandir espacialmente, divertir-se) e designa o ato de caminhar (deambular, passear, flanar, caminhar) como lazer e atividade física. As caminhadas podem ser empreendidas no intuito de relaxamento, recreação ou contemplação da paisagem ao ar livre, algo que já era praticado anteriormente pela aristocracia em jardins e parques de diversos castelos, pelo menos desde o século XVI, mas que se tornaria também parte do ethos burguês a partir do final do século XVIII, adquirindo componentes sociais, como travar contatos, conversar reservadamente, ver e ser visto no espaço público etc.

Tecidas tais considerações, a seguir, interpretaremos as imagens do ato de passear, produzidas pelo pintor August Macke.

Spaziergänger am See
(1912; Pessoas passeando nas margens do lago)
Material: óleo sobre tela, 71,4 x 71,2cm
(KUNST FÜR ALLE, s/d)
(https://www.kunst-fuer-alle.de/deutsch/kunst/kuenstler/kunstdruck/august-macke/345/146/556399/spaziergaenger-am-see/index.htm )

Este primeiro quadro, inicialmente, evidencia algumas características estilísticas da pintura de August Macke como o emprego de cores puras, sem intensidade de gradação, e também os traços delimitando formas que se orientam por certa geometria. Já em termos temáticos, temos a representação de nove figuras, sendo que quatro delas passeiam sob a copa de uma árvore, enquanto outras cinco estão debruçadas a uma murada observando o lago, onde se vê ao longe um veleiro. Das nove figuras, duas são mulheres e 07 são homens, todos estão vestidos à moda burguesa, as mulheres trajam vestidos longos e têm amplos chapéus vermelhos na cabeça, enquanto os homens trajam calças e paletós de cores distintas e têm chapéus coco, típicos da época. A contemplação do quadro nos permite algumas inferências: o ato de passear nas margens do lago possibilitava também que as pessoas pudessem apreciá-lo da murada; sem dúvida, há um recorte social no grupo de figuras representadas, há mais homens do que mulheres, e elas estão acompanhadas; os dois grupos que passeiam – dois homens em primeiro plano, um de costas e outro de lado, conversam enquanto caminham, um casal que passeia, vindo pelo caminho em direção oposta à dos dois homens, também parecem conversar e a ter atenção para a vista do lago. Do modo como é retratado por August Macke, o ato de passear está ligado, portanto, a certa sociabilidade prazerosa na natureza.

Spaziergang auf der Brücke
(1912; Passeio na ponte)
Material: óleo sobre tela, 86 x 100cm
(KUNST FÜR ALLE, s/d)
(https://www.kunst-fuer-alle.de/deutsch/kunst/kuenstler/kunstdruck/august-macke/345/245/557715/spaziergang-auf-der-bruecke/index.htm )

Nesse segundo quadro, nota-se certa semelhança com o anterior na representação das figuras trajando roupas burguesas. Em primeiro plano destaca-se um grupo de quatro figuras: dois homens adultos trajando paletó e chapéu coco, e duas jovens, aparentando ser uma adolescente e uma menina, parcialmente encoberta pela silhueta da primeira. O modo de trajar das jovens, com vestidos compridos até um pouco abaixo dos joelhos, se distingue da mulher, a quinta figura do quadro, que passeia ao fundo, em direção ao grupo, e traja um longo vestido e chapéu brancos, e segura uma sombrinha aberta, da mesma cor. Do lado direito do quadro aparecem outras figuras sem grandes detalhes, mas que, percebe-se pelas vestes, são homens, dois deles estão dentro de um barco, enquanto outro está de pé, à margem, e outro auxilia a atracar a embarcação. Da ponte, as duas jovens e um dos homens em primeiro plano contemplam a cena a partir da murada. A exuberância da natureza domina boa parte do quadro, com duas árvores que ladeiam o caminho e a ponte e com densa vegetação em diversos tons de verde. Portanto, mais uma vez, o ato de passear adquire um sentido de sociabilidade, em que as pessoas caminham e, ao mesmo tempo, contemplam a natureza e cenas associadas a outras atividades, como é o caso dos homens no barco, e também do veleiro no quadro anterior.

Frauen beim Spaziergang
(1913; Mulheres no passeio)
Material: tinta guache sobre papelão
(KUNST FÜR ALLE, s/d)
(https://www.kunst-fuer-alle.de/deutsch/kunst/kuenstler/kunstdruck/august-macke/345/318/557659/frauen-beim-spaziergang/index.htm )

Em termos estilísticos, este quadro se diferencia sensivelmente dos dois primeiros analisados. De início, constata-se que há três figuras femininas, mulheres que passeiam em meio a uma paisagem pouco definida, constituída por pinceladas borradas, com predomínio das cores verde, azul e vermelho, do mesmo modo que o caminho, com pinceladas borradas em vermelho e amarelo. O mesmo ocorre com as figuras das mulheres, trajando vestidos longos e chapéus à moda burguesa, sem que, todavia, haja definição nítida da silhueta de seus corpos. Duas mulheres, no centro do quadro, parecem conversar entre si enquanto caminham, e outra mulher caminha em primeiro plano, do lado direito do quadro. Trata-se, pois, de um quadro com menos informações do que os dois primeiros, mas que ainda nos permite fazer algumas inferências: o passeio na natureza possibilita a fruição do tempo e, simultaneamente, a sociabilidade a partir de referenciais burgueses da época, com certa formalidade expressa, por exemplo, nas vestes.

Spaziergang im Park
(1914; Passeio no parque)
Material: tinta guache e pastel sobre papel cartão, 44,5 x 29,8cm
(MEISTERDRUCKE, s/d)
(https://www.meisterdrucke.pt/impressoes-artisticas-sofisticadas/August-Macke/822473/Um-passeio-no-parque,-1914.html )

Por sua vez, o quarto exemplo de análise de quadros de August Macke que têm por tema o ato de passear reitera alguns elementos dos quadros anteriores. Em termos estilísticos, ele aparenta ser mais próximo dos dois primeiros, pois as figuras – duas mulheres e um homem – e os elementos da natureza – troncos e copas de árvores e vegetação rasteira, além do caminho – possuem contornos definidos. Do mesmo modo que nos quadros anteriores, as figuras femininas são caracterizadas por trajarem vestidos longos e chapéus à moda burguesa, com destaque para a figura da mulher, que aparece centralizada no quadro, em primeiro plano, que carrega uma sombrinha aberta. Ao fundo, do lado direito, outra mulher conversa com um homem, cujas vestes não são bem definidas, mas que poderia ser um uniforme militar em cor azul, e ele usa chapéu que se assemelha a um quepe. Ao fundo do parque vislumbra-se algumas construções e também pedaços do céu azul, em dia ensolarado. Mais uma vez, nota-se que, do modo como o ato de passear é retratado por August Macke, ele se associa à sociabilidade: as pessoas caminham e conversam, ao mesmo tempo em que desfrutam do momento ao ar livre, em meio à natureza. Além disso, se no quadro anterior o passeio é destacado, mas não onde ele ocorre, nos dois primeiros e neste exemplo o paratexto principal – o título – indica a espacialização: a margem do lago, a ponte e, respectivamente, o parque.

Por fim, o quinto e último quadro selecionado como exemplo de análise é Promenade (Passeio), de 1914. Aqui, caberia uma distinção terminológica entre Spaziergang (passeio enquanto ato de passear) e Promenade (passeio enquanto caminho próprio para passear), termo originário do verbo francês promener, que significa “passear”. Portanto, a Promenade é um caminho propício para o desfrute do passeio e da contemplação da paisagem, e não necessariamente um caminho na sua funcionalidade pragmática para todo e qualquer transeunte que se desloca. É por isso que passeios localizados às margens de lagos e rios são designados de Promenade, em geral, ladeados por vegetação e fileiras de árvores. Espaços como esses têm um significado social enquanto espaço público, espaço em que pessoas vêem outras e querem ser vistas, podem conversar e travar novos contatos, longe da agitação das ruas. Esse, aliás, parece ser um aspecto partilhado por August Macke. Em seu quadro, aparecem oito figuras, sendo três mulheres e cinco homens, todos trajados formalmente de acordo com a moda burguesa da época, os homens com ternos e chapéus coco, e as mulheres com chapéus e vestidos longos. Um grupo de figuras se destaca em primeiro plano: três homens e uma mulher, sendo que apenas esta tem seu rosto retratado com alguns detalhes, além de trajar vestido e chapéu branco, o que a destaca das demais figuras que integram o quadro. Outros dois homens caminham em direções distintas, um da esquerda para a direita e outro, na direção contrária às outras figuras. Não se evidencia se elas expressam comunicação entre si, principalmente pela distância entre os corpos. E as quatro figuras – dois homens e duas mulheres – ao fundo também não permitem maiores inferências quanto a isso. O caminho em que elas passeiam é ladeado por árvores e arbustos.

Em suma: ao retratar situações em que pessoas passeiam, Auguste Macke registra instantâneos de uma época específica. Às portas da Primeira Guerra Mundial, o pintor parece se apegar a imagens de lazer como possibilidade de desfrute de uma vida em harmonia com a natureza. Suas pinturas registram um modo de olhar para a vida burguesa na passagem do século XIX para o XX, em que, por exemplo, os passeios mantinham-se como um dos modos de se expressar em termos de sociabilidade. Aquele que, em setembro de 1914, morreria nas trincheiras da guerra parecia resistir, através de sua arte, a um entendimento otimista do progresso, atribuindo à natureza certo caráter idílico, em meio à qual burgueses encontrariam refúgio e deleite, em passeios e caminhadas, desfrutando do lazer e, ao mesmo tempo, evidenciando traços distintivos de classe.

Referências

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KUNST FÜR ALLE, Bilder von August Macke, s/d. Disponível em: https://www.kunst-fuer-alle.de/deutsch/kunst/bilder/kuenstler/August+Macke/345/1/index.htm. Acesso em: 06 dez. 2021.

MEISTERDRUCKE. Bilder von August Macke, s/d. Disponível em: https://www.meisterdrucke.pt/artista/August-Macke.html. Acesso em: 06 dez. 2021.

MELO, Victor Andrade de. Esporte, lazer e artes plásticas: diálogos. Rio de Janeiro: Apicuri, 2009.

TERRA, Carlos Gonçalves. O prazer no jardim. In: MARZANO, Andrea; MELO, Victor Andrade de (orgs.). Vida divertida: histórias do lazer no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Apicuri, 2010, p. 75-95.

WALTHER, Lutz; IMWOLDE, Janca. August Macke. In: LeMO – Lebendiges Museum Online. 14 set. 2014. Disponível em: https://www.dhm.de/lemo/biografie/august-macke . Acesso em 06 dez. 2021.

Algumas reflexões sobre Cultura e Lazer

Elcio Loureiro Cornelsen

Iniciaremos nossas reflexões sobre a relação entre Cultura e Lazer pela definição do conceito de “cultura”. Segundo definição proposta pelo antropólogo social Roberto DaMatta no ensaio “Você tem cultura?” (2011), cultura é “uma categoria intelectual: um conceito que pode nos ajudar a entender melhor o que acontece no mundo em nossa volta” (DAMATTA, 2011, p. 120). Em seu primeiro sentido, cultura seria tomada como categoria do senso comum, como erudição, sofisticação, sabedoria e educação: “Cultura aqui é equivalente a volume de leituras, a controle de informações, a títulos universitários e chega até mesmo a ser confundida com inteligência” (DAMATTA, 2011, p. 120-121). Já o segundo sentido de cultura, delimitada a partir de preceitos da antropologia social e da sociologia, diria respeito à “maneira de viver total” de um grupo, sociedade, país ou pessoa (DAMATTA, 2011, p. 122). Além de apontar para o caráter dinâmico da cultura, DaMatta critica a distinção entre “cultura” e “culturas particulares e adjetivadas” (DAMATTA, 2011, p. 123), em que se fala de “alta cultura” e “baixa cultura” ou “cultura popular”: “Assim, teríamos a ‘cultura’ e culturas particulares e adjetivas (popular, indígena, nordestina, de classe baixa etc.) como formas secundárias, incompletas e inferiores da vida social” (DAMATTA, 2011, p. 123). Ao contrário dessa postura, o antropólogo propõe uma noção comparativa, mas não-hierarquizada de cultura. Haveria, pois, a necessidade de se substituir a fórmula negativa – da ausência de cultura ou de culturas adjetivadas, principalmente em um país como o Brasil, “onde as formas hierarquizantes de classificação cultural sempre foram dominantes” (DAMATTA, 2011, p. 126).

Posto isto, partamos para as reflexões sobre o lazer tendo em mente o conceito de cultura, conforme delimitado por Roberto DaMatta. De acordo com Nelson Carvalho Marcellino em “O conteúdo do lazer” (2012), em termos culturais, haveria uma série de critérios orientadores que podem determinar os diversos interesses por práticas de lazer, por exemplo, baseados na “satisfação estética” ou no “movimento” (MARCELLINO, 2012, p. 18). De acordo com o teórico do lazer, as “seis áreas fundamentais de interesse” seriam as seguintes: “interesses artísticos”, “interesses intelectuais”, “interesses físicos”, “interesses manuais”, “interesses turísticos” e “interesses sociais” (MARCELLINO, 2012, p. 19). Por sua vez, os aspectos característicos de cada campo de domínio seriam: 1. “interesses artísticos”: “imaginário”, “conteúdo estético”; 2. “interesses intelectuais”: “contato com o real”; 3. “interesses físicos”: “movimento” [corporal]; 4. “interesses manuais”: “manipulação” [de materiais]; 5. “interesses turísticos”: “quebra da rotina temporal e espacial”; 6. “interesses sociais”: “o relacionamento” e o “convívio social” (MARCELLINO, 2012, p. 19).

Seguindo na mesma direção, na introdução do livro Lazer, práticas sociais e mediação cultural (2019), Christianne Luce Gomes, José Alfredo Oliveira Debortoli e Luciano Pereira da Silva definem como “conteúdos culturais de lazer” “diferentes manifestações culturais vivenciadas como lazer, tais como o cinema, o teatro, a fotografia, a brincadeira, os jogos digitais, a festa, o esporte e a capoeira, entre outras” (GOMES; DEBORTOLI; SILVA, 2019, p. 1). Os teóricos do lazer propõem também uma tipologia das atividades de lazer, “divididas em interesses físicos, artísticos, intelectuais, práticos ou manuais e sociais” (GOMES; DEBORTOLI; SILVA, 2019, p. 1). Todavia, Gomes, Debortoli e Silva ressaltam que, “[p]rimeiramente, seria muito difícil – quase impossível – afirmar que uma atividade pertence a determinada categoria, mesmo quando se leva em conta o predomínio do interesse” (GOMES; DEBORTOLI; SILVA, 2019, p. 2). Para ilustrar tal argumento, os teóricos enfocam a atividade de artesanato, que, em geral, é apontada como motivada por interesses manuais e sociais, enquanto a pintura seria considerada como produto de interesses artísticos: “É como se o artesanato estivesse privado do imaginário, das emoções, dos sentimentos, e do sentido estético atribuídos à pintura e a outras formas de arte” (GOMES; DEBORTOLI; SILVA, 2019, p. 2).

Diante desse quadro, os teóricos do lazer enfatizam que a proposta de classificação formulada por Joffre Dumazedier – e consideramos que o mesmo pode ser pensado em relação à proposta de Nelson Carvalho Marcellino – demanda uma ampliação dos interesses culturais, no sentido de “agregar outros interesses além dos cinco propostos pelo autor francês, acrescidos pelos turísticos e virtuais. Poderíamos falar, assim, em interesses gastronômicos e religiosos, por exemplo, entre inúmeros outros” (GOMES; DEBORTOLI; SILVA, 2019, p. 2). Como nos lembram Gomes, Debortoli e Silva, “[o] lazer não está, por isso, sujeito ao chamado tempo livre, ou encerrado no vazio do ‘não trabalho’” (GOMES; DEBORTOLI; SILVA, 2019, p. 2). Portanto, conforme os autores, “precisamos ir além, expandindo as possibilidades de experienciar, ludicamente, as diversas manifestações culturais na vida social” (GOMES; DEBORTOLI; SILVA, 2019, p. 2).

Outro aspecto fundamental a ser enfatizado, ao se compreender o lazer como uma dimensão da cultura, é considerá-lo, conforme propõe Christianne Luce Gomes em “Lazer, formação e atuação profissional. Mapeamento histórico do lazer na América Latina” (2011), como “caracterizado pela vivência lúdica de manifestações culturais no tempo/espaço social”, em que o “lúdico é a ‘essência’ do lazer” (GOMES, 2011, p. 149). Conforme a teórica do lazer,

[a]s manifestações culturais que constituem o lazer são práticas sociais vivenciadas como desfrute e como fruição da cultura, tais como a festa, a dança, o jogo, a brincadeira, o teatro, a música, a pintura, o desenho, a escultura, o artesanato, a literatura, a poesia, o espetáculo, o passeio, a viagem e as diversas práticas corporais, entre incontáveis possibilidades. […] (GOMES, 2011, p. 150)

Desse modo, torna-se fundamental nos estudos sobre e esporte e demais práticas corporais associados ao lazer considerar essa dimensão cultural, que, conforme aponta Christianne Luce Gomes na obra Lazer, trabalho e educação: relações históricas, questões contemporâneas (2008), “abraça quatro elementos inter-relacionados: a atitude lúdica, as manifestações culturais, o tempo e o espaço” (GOMES, 2008, 12). E considerar o tempo e o espaço pressupõe o entendimento de cultura em sua dinâmica, “que envolve, contemporaneamente, continuidade e mudança, permanências e inovações”, em que se leve em consideração “a pluralidade de significados procedentes de diversificadas manifestações” (GOMES, 2008, p. 72).

Por fim, se pensarmos o lazer, o esporte e as práticas corporais tanto como manifestações culturais, quanto como representações simbólicas em determinado espaço e tempo, podemos desenvolver estudos que, por exemplo, entendam tais manifestações também no nível de sua representação em outras manifestações culturais, como a literatura, o cinema e as artes em geral.

Referências Bibliográficas

DAMATTA, Roberto. Você tem cultura? In: DAMATTA, Roberto. Explorações: ensaios de sociologia interpretativa. 12. ed., Rio de Janeiro: Rocco, 2011, p. 120-127.

GOMES, Christianne Luce. Lazer, trabalho e educação: relações históricas, questões contemporâneas. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008.

GOMES, Christianne Luce. Lazer, formação e atuação profissional. Mapeamento histórico do lazer na América Latina. In: ISAYAMA, Hélder Ferreira; SILVA, Silvio Ricardo da (orgs.). Estudos do lazer: um panorama. Rio de Janeiro: Apicuri, 2011, p. 145-164.

GOMES, Christianne Luce; DEBORTOLI, José Alfredo Oliveira; SILVA, Luciano Pereira da. Lazer, práticas sociais e mediação cultural: notas introdutórias. In: GOMES, Christianne Luce; DEBORTOLI, José Alfredo Oliveira; SILVA, Luciano Pereira da (orgs.). Lazer, práticas sociais e mediação cultural. Campinas, SP: Autores Associados, 2019, p. 1-7.

MARCELLINO, Nelson Carvalho. O conteúdo do lazer. In: MARCELLINO, Nelson Carvalho. Estudos do Lazer: uma introdução. 5ª ed., Campinas/SP, Autores Associados, 2012, p. 18-20.

Notas bibliográficas sobre lazer e divertimento no Brasil Imperial (1822-1889)

Elcio Loureiro Cornelsen

No primeiro semestre letivo de 2019, tive a oportunidade de oferecer uma disciplina junto ao Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar, da Escola de Educação Física, Fisioterapia e Terapia Ocupacional, da Universidade Federal de Minas Gerais, cujo foco principal contemplou diversas abordagens sobre lazer e divertimento no Brasil Imperial (1822-1889), a partir de estudos realizados por historiadores e sociólogos nas últimas décadas, com o objetivo de possibilitar reflexões sobre a formação sociocultural brasileira no século XIX a partir de um quadro amplo e diversificado das atividades de lazer e divertimento no Brasil Imperial.

Várias atividades de caráter sociocultural e esportivo praticadas no período se relacionam com o lazer e o divertimento, entre elas, os bailes, a dança, a música, a literatura, o teatro, as artes circenses, as festas religiosas, as reuniões sociais em tavernas e botequins, a natação, o remo, o turfe, as touradas, a patinação, o jogo da bola e o cricket. Sem dúvida, como capital imperial, a cidade do Rio de Janeiro representava um centro onde surgiu, por assim dizer, uma indústria do entretenimento, e a partir do qual tais atividades eram irradiadas para todo o país. Entretanto, estudos recentes também procuram contemplar outros centros urbanos à época, como São Paulo e Porto Alegre.

O nome de maior destaque nos estudos sobre lazer e divertimento no Brasil Imperial é, sem dúvida, o de Victor Andrade de Melo, historiador do esporte e teórico do lazer, tanto pela continuidade de pesquisa nas últimas duas décadas, quanto pela atuação na formação de pesquisadores que também se dedicam a estudos com esse perfil. A seguir, mencionarei, brevemente, a título de notas, uma série de publicações que foram adotadas como referência de leitura na disciplina “Lazer e divertimento no Brasil Imperial (1822-1889)”.

Inicialmente, na apresentação da coletânea de ensaios Vida divertida: histórias do lazer no Rio de Janeiro (1830-1930) (2010), Andrea Marzano e Victor Andrade de Melo não apenas relatam brevemente sobre os diversos temas tratados no livro, como também lançam importantes questões para se pensar a história do lazer e do divertimento na capital do Império. Seria, pois, necessário adotar um viés social e cultural para um trabalho histórico sobre suas especificidades. Em primeiro lugar, haveria algo específico do Império brasileiro que o distinguiria de outros centros europeus, como a Inglaterra, a França e a Alemanha: por um lado, a escravidão como base para a atividade agrária e, por outro, a ausência de projetos de industrialização, ambos como traços de atraso em relação à inserção do país na Modernidade, com seus processos de urbanização e de organização do trabalho e do lazer. Assim, frente à complexidade social da época, o conceito de Lazer como “tempo livre” em relação direta com o “tempo do trabalho”, no contexto do Brasil Imperial, não se adequaria plenamente.

Por sua vez, no ensaio “’Em casa fazendo graça’: domesticidade, família e lazer entre a Colônia e o Império” (2010), publicado em Vida divertida: histórias do lazer no Rio de Janeiro (1830-1930), a pesquisadora Mary del Priore traça um amplo quadro das atividades de lazer e diversão no Brasil, da Colônia ao Império. Tendo por foco o Rio de Janeiro, enquanto centro do poder desde meados do século XVIII, a historiadora pontua que, se na Colônia o tempo livre era associado à “moleza”, combatida por preceitos religiosos, esse quadro foi se alterando gradativamente: atividades domésticas, visita de mascates e de moradores da vizinhança, a colheita, as refeições e danças ao ar livre, conversações, intrigas e maledicências, o cafuné, os jardins das casas, jogos de entretenimento (baralho, gamão, tarô, pedrinhas, pião), cantar, tocar viola, contação de histórias e rezas, comemorações familiares, banquetes. Do espaço doméstico, o lazer e a diversão passaram a ter presença em espaços públicos, sobretudo após a vinda da Família Real portuguesa para o Brasil em 1808, com a criação de espaços destinados ao Lazer: o Passeio Público, teatros, ópera, cafés e confeitarias. Desenvolvem-se, então, as leituras, as tertúlias, as reuniões, a flanerie etc. O modelo era a França do Segundo Império.

Naquele contexto, segundo Mary del Priore, o Real Teatro São João se tornou um espaço público de lazer. As missas dominicais também integravam esse conjunto de atividades, como um evento social em que se praticava, por exemplo, o flirt, o namoro, não estando mais restrito ao ambiente doméstico. A partir de 1840 a influência francesa na moda e no comportamento tornou-se cada vez mais patente. Professores franceses passaram a ensinar dança, mais sensual que a tradicional, o que passou a ser uma marca na Corte, não obstante as resistências de alguns segmentos da sociedade. Notava-se também uma diferenciação de gênero quanto à educação e ao uso do tempo livre: enquanto homens contavam com educação formal e usufruíam do lazer fora do espaço doméstico, este era espaço de confinamento para as mulheres em seus afazeres e em atividades de lazer, como fiar ou a se dedicar à leitura.

Cabe ressaltar, também, que, mesmo com toda a exploração e a violência às quais os escravos eram expostos cotidianamente, de acordo com Mary del Priori, estes ainda encontravam certos momentos de lazer e diversão, quando produziam objetos para uso, indumentárias, instrumentos musicais, e também quando tocavam, cantavam, dançavam e praticavam jogos como a capoeira.

Essa passagem do ambiente doméstico para o ambiente público é enfocada também por Núncia Santoro de Constantino no caso de Porto Alegre. No artigo “A conquista do tempo noturno: Porto Alegre ‘moderna’” (1994), a historiadora oferece ao leitor um quadro sobre a modernização da cidade de Porto Alegre. Fundada em 26 de março de 1772 e emancipada em 11 de dezembro de 1810, Porto Alegre sofreu sensíveis transformações ao longo do século XIX. Primeiramente, como cidade fortificada, não oferecia a seus habitantes estrutura adequada para atividades de lazer e divertimento. Somente por volta de 1840 é que a cidade floresce economicamente, muito em virtude da imigração alemã, tornando-se um centro de comércio. Àquela época remontam as primeiras tentativas de iluminação da cidade. Também o incremento de linha férrea ligando Porto Alegre a São Leopoldo, centro de colonização alemã, contribuiu para que, gradativamente, a cidade fosse criando estrutura adequada à sua importância enquanto capital da província de São Pedro do Rio Grande. Mas é, sobretudo, a partir de meados do século XIX, e no contexto da Guerra do Paraguai, que os espaços noturnos de lazer e divertimento se multiplicam: teatros, confeitarias, cafés, vaudevilles, restaurantes, cervejarias, clubes etc.

Outra contribuição significativa para os estudos sobre lazer e divertimento no Brasil Imperial é o ensaio “O prazer no jardim” (2010), de Carlos Gonçalves Terra, também publicado em Vida divertida: histórias do lazer no Rio de Janeiro (1830-1930). Em seu estudo, o historiador das artes e do paisagismo dimensiona o jardim em relação aos sentidos humanos: embora este possa, à primeira vista, ser um apelo aos olhos, com suas formas e flora multicores, também estimula o olfato através de variadas plantas e flores, bem como a audição através dos cantos dos pássaros. Todavia, o autor nos lembra que o jardim se distingue de matas como, por exemplo, uma floresta, e tal distinção reside em um ponto específico: a intervenção humana, a qual interpreta o jardim como “representação ordenada do mundo natural” (TERRA, 2010, p. 77). Além disso, o jardim se relaciona também com mitos tradicionais, sendo, talvez, o de maior destaque o “Jardim do Éden” na tradição judaico-cristã. Porém, para além dos mitos, o jardim se relaciona com o tema do lazer tanto pela fruição que proporciona àquele que o contemple ou mesmo que por ele caminhe, quanto para aqueles que se dedicam à jardinagem, marcada por certo “colecionismo”. Segundo o autor, o primeiro jardim público do Brasil Colônia de que se tem notícia é o Passeio Público, criado em 1779 no Rio de Janeiro. Além deste, a presença da Família Real portuguesa impulsionou a criação do Real Horto em 1819, aberto ao público em geral a partir de 1822. Outro jardim de destaque em meados do século XIX no Rio de Janeiro foi o Campo de Santana.

Dos ambientes domésticos e dos jardins, passemos ao enfoque de outro espaço de lazer e divertimento: as cervejarias. Em seu estudo sobre “Novas dinâmicas de lazer” (2018), Thaina Schwan Karls e Victor Andrade de Melo utilizam como fontes artigos publicados na imprensa do Rio de Janeiro, bem como romances e outras obras. Os objetos de análise são três cervejarias: a Fábrica de Cerveja Nacional (1848), a Imperial Fábrica de Cerveja (1855) e a Nova Fábrica de Cerveja Nacional (1864). Em meados do século XIX, mudanças conjunturais no Brasil significaram um incremento na produção fabril e também na adoção de práticas de lazer e entretenimento, dentro de um processo de modernização do país. Foi o segmento cervejeiro que passou a se destacar nesse período, na cidade do Rio de Janeiro. Um aspecto que lhe era, ao mesmo tempo, peculiar e inovador, era o fato de os proprietários de fábrica conciliarem, em seus estabelecimentos, produção e diversão. Além de terem popularizado a cerveja, proporcionaram a criação de um rico e diversificado mercado de entretenimento. Todavia, entraram em declínio na década de 1890, principalmente por mudanças decorrentes da urbanização.

Outro aspecto a se destacar é a presença, cada vez mais intensa, de danças nos salões da capital imperial. No artigo “Educação do corpo – bailes no Rio de Janeiro do século XIX: o olhar de Paranhos” (2014), Victor Andrade de Melo desenvolve um estudo a partir de crônicas de José Maria da Silva Paranhos, futuro Visconde do Rio Branco, publicadas em meados do século XIX no Jornal do Commércio, no intuito de enfocar uma das diversões significativas da época: os eventos dançantes. Entretanto, para além do divertimento, tais eventos desempenhavam também um importante papel na socialização e na educação do corpo, adequado aos preceitos das elites na sociedade fluminense. Assim, os bailes figuravam, ao mesmo tempo, como possibilidades de “educação do físico”, do “espírito” e da “identidade” (Georges Vigarello), aspectos caros a Paranhos, que procurava unir a modernização à tradição no seu modo de encarar tanto o cenário político de seu tempo, quanto às manifestações sociais e culturais. A dança de salão, portanto, passou a integrar programas de aprendizado, pois se tornava importante prática corporal com fins de educação do corpo e, ao mesmo tempo, de socialização no ambiente das elites.

Para além da capital imperial, a dança se fazia presente também em outras localidades. No artigo “História da Dança de Salão no Brasil: São Paulo-SP, no século XIX” (2013), Maristela Zamoner apresenta resultados de pesquisa desenvolvida sobre o tema, tendo por base uma vasta coleção de periódicos publicados no século XIX, disponibilizados em formato digital pela Hemeroteca da Biblioteca Nacional. Para selecionar o material, a autora procurou filtrá-lo a partir de buscas por termos como “dança” e “São Paulo”. Em seguida, Maristela Zamoner efetuou uma análise de conteúdo, muito mais de caráter qualitativo, a partir da computação de incidências. Baseada nos indícios encontrados nos periódicos analisados, a autora concluiu que, durante o século XIX, na cidade de São Paulo, havia muitas sociedades de dança e baile, além de clubes dançantes que promoviam bailes, ensaios e aulas de dança. Além disso, vários colégios de ensino formal ofertavam aulas de dança como parte integrante da educação formal, e constatou-se também a presença de professores de dança, ratificada, sobretudo, por anúncios de aulas. Os tipos predominantes de danças na São Paulo do Século XIX eram Valsa, Polka, Quadrilha, Mazurka, Shottish e Samba.

De volta à capital imperial, outro aspecto se destacava como possibilidade de lazer e divertimento: a patinação. No artigo “Saudável e ‘fashionable’: a patinação no Rio de Janeiro do século XIX (1878-1892)” (2018), Victor Andrade de Melo destaca a presença da patinação no período de 1878 a 1892. Tal modalidade, contemporânea da ginástica e do esporte como novos componentes da diversão e do lazer na cidade, se afinava mais com a dança, por ser considerada menos extenuante em termos de esforço físico e, ao mesmo tempo, por contribuir com a “moralidade”, desde que regulamentada a sua prática nesse sentido. O Skating-Rink teria sido o principal difusor da patinação no Rio de Janeiro, além de dois clubes, o Clube dos Patinadores e o Skating Clube, sendo que estes não tiveram vida longa. Além disso, mesmo o Skating-Rink oferecia outras modalidades de diversão em sua programação para além da patinação, incluindo a luta romana, o box-ing e o bilhar. A patinação se efetivou em três formas: a prática livre, a prática de espetáculo, e a corrida. Todavia, também recebia críticas na imprensa, seja pelos riscos de acidentes e quedas, seja pelo fato de os espaços em que se praticava a patinação, cada vez mais, se popularizavam, perdendo, assim, o seu caráter “fashionable”.

Entretanto, a patinação se popularizaria também em outras partes do Brasil. No artigo “A modernidade sobre rodinhas: a patinação na Porto Alegre do século XIX (1878-1882)” (2016), Cléber Eduardo Karls e Victor Andrade de Melo apresentam um estudo sobre a chegada e o desenvolvimento da prática de patinação em Porto Alegre, capital da província de São Pedro do Rio Grande do Sul. Para isso, os autores lançaram mão de fontes jornalísticas, a partir da seleção de alguns periódicos publicados em Porto Alegre na segunda metade do século XIX, entre eles, A Reforma, O Século e a Gazeta de Porto Alegre. Os autores selecionaram para análise, sobretudo, anúncios publicados nesses periódicos, uma vez que o tema da patinação estava ausente de editoriais e crônicas. Em meados do século XIX, empreendimentos voltados para a diversão e o lazer em Porto Alegre se encontravam em expansão, movidos pelo ímpeto civilizatório da modernidade. Um espaço em especial tornou-se o seu centro: a Praça da Harmonia. Nela, alguns estabelecimentos dedicados à patinação se destacaram: o Skating-Rink Americano, o Clube dos Patinadores, e o Rink Cosmopolita. Ao se comparar a patinação no Rio de Janeiro, os historiadores constataram algumas distinções em Porto Alegre: a menor participação feminina e a menor ênfase no incentivo à saúde e à higiene.

Assim como a patinação, algumas modalidades esportivas se difundiram amplamente na capital imperial, na segunda metade do século XIX. Para Victor Andrade de Melo, um fator foi fundamental para que cada vez mais o esporte ganhasse espaço: o advento dos clubes. No artigo “Entre a elite e o povo: o ‘sport’ no Rio de Janeiro do século XIX (1851–1857)” (2015), utilizando como fonte matérias e anúncios publicados em periódicos da cidade do Rio de Janeiro, o historiador enfoca duas modalidades esportivas: as corridas de cavalos e o remo. Os marcos temporais da pesquisa são definidos pela criação de agremiações de remo e de turfe: o Club de Corridas e a Sociedade Recreio Marítimo em 1851; a criação do Jockey Club Petropolitano em 1857. Embora o campo esportivo ainda não estivesse suficientemente estruturado nesse período, Victor Andrade de Melo constatou que já começava a se formar novas possibilidades de prática esportiva através de uma novidade que chegou ao país: o club. Cabe lembrar que, naquele período, a prática esportiva era associada às ideias de civilização e progresso. Depois de superados os períodos de instabilidade no Período Regencial (1831–1841), e com a assunção de Pedro II ao trono (1841), um novo ímpeto de modernização se fez presente. Todavia, dentro dos clubes ainda ocorria debates em torno de noções de popularização e de elitização do esporte. Alguns chegaram a tomar medidas restritivas no sentido de interditar a participação de populares em suas competições, mesmo que como assistência.

Todavia, no artigo “Antes do club: as primeiras experiências esportivas na capital do império (1825-1851)” (2014), Victor Andrade de Melo apresenta um quadro muito interessante sobre o desenvolvimento das primeiras práticas esportivas no país antes mesmo da formação de agremiações esportivas propriamente ditas, enfocadas no artigo anterior. Turfe, remo e cricket são três modalidades que aparecem nas fontes estudadas – jornais e revistas e relatos de viajantes – já na primeira metade do século XIX, na capital imperial. Além disso, outras fontes permitiram ao historiador enfocar também as mudanças na terminologia empregada no emergente âmbito esportivo: os dicionários de língua portuguesa publicados nos séculos XVIII e XIX. Termos como “athleta”, “club”, “sportman”, “desporto” e “esporte” são apresentados, sendo que este último teria se consolidado como um neologismo do termo inglês “sport”. Constatar-se-ia também o uso de terminologia em inglês na cobertura de corridas de cavalos e das primeiras regatas, o que patenteia a influência britânica na adoção dessas práticas esportivas. Além disso, ressalta-se também a relação do esporte com o âmbito militar e com os primórdios da formação do sentimento nacional.

Seguindo a mesma linha de raciocínio, no artigo “A sociabilidade britânica no Rio de Janeiro do século XIX: os clubes de cricket” (2017), Victor Andrade de Melo apresenta um quadro muito interessante para se pensar a presença britânica no Rio de Janeiro, no século XIX, bem como em sua sociabilidade a partir da estruturação de clubs de cricket. A partir da década de 1850, o historiador constatou através das fontes uma maior intensificação da prática de cricket, que atingiria o seu auge na década de 1890. Para além da contribuição britânica para a organização e difusão de corridas de cavalos e de regatas, o Rio Cricket Club e o Club Brazileiro passaram não só a rivalizar como principais agremiações britânicas da cidade do Rio de Janeiro, ocupando o mesmo espaço da Rua Paissandu, como também garantir espaços de sociabilidade fundamentais para a manutenção das tradições e dos valores defendidos pela colônia britânica em solo brasileiro. Mesmo quando o Rio Cricket se transferiu para Niterói, enquanto o Club Brazileiro mudou seu nome para Paysandú Cricket Club, ambos mantiveram uma boa relação, não obstante a rivalidade que se formou entre essas agremiações.

Por sua vez, no caso das atividades náuticas, estudos demonstram que também o banho de mar e a natação, juntamente com o remo, se difundiram de maneira significativa na segunda metade do século XIX, no Rio de Janeiro. O estudo de Victor Andrade de Melo, intitulado “O mar e o remo no Rio de Janeiro do século XIX” (1999), apresenta uma série de conclusões que permitem aferir não apenas a crescente popularidade dessa prática esportiva, como também as transformações sociais e culturais pelas quais a então capital federal passava. Se na década de 1850 a prática do remo e também do banho de mar ainda eram incipientes, estes começariam a se popularizar nas décadas seguintes, sobretudo enquanto parte de um projeto de modernidade, que incluía também programas de higiene e saneamento nos espaços urbanos. Em termos cronológicos, atrasado em relação ao turfe, considerado aristocrático, o remo se afeiçoaria mais ao segmento da burguesia, pois fomentava valores como competitividade, agressividade e busca pela vitória. Na virada do século, notava-se também um maior incentivo por parte de entidades governamentais à prática de regatas.

Ainda sobre as atividades náuticas, no artigo “Enfrentando os desafios do mar: a natação no Rio de Janeiro do século XIX (anos 1850-1890)” (2015), Victor Andrade de Melo propõe um estudo sobre a conformação da prática da natação na capital imperial. Esta, de início, evidenciava o embate entre “o homem da tradição bacharelesca” e “o novo [homem] burguês” (MELO, 2015, p. 302). Aliás, a intelectualidade da época não ficou alheia à prática da natação e aos banhos de mar, de modo que José de Alencar chegou a recomendá-las como meios para conservar a “saúde pública”. Desse modo, a prática da natação era articulada a questões de saneamento básico e de higiene na cidade do Rio de Janeiro. Ressalta-se que os banhos de mar a partir da década de 1850 figuravam como atividade “tônica, salutar e refrigerante” (MELO, 2015, p. 305). Inclusive, a “vulgarização dos banhos de mar” agiu como propulsora do “desenvolvimento do hábito da natação”. Falava-se de uma “Hidropatia” (MELO, 2015, p. 306), associando natação e saúde pública. A prática da natação era recomendada a mulheres como meio de desenvolvimento físico e de combate à inatividade. Acresce que, para além das questões de higiene e de saúde pública, a natação se apresentava como modo de diversão e de ocupação das praias. Era inegável sua associação aos Clubes de Regatas.

Outra prática que se intensificou na capital imperial, no século XIX, foi a das touradas. Já praticada no país desde o século XVII, a corrida de touros se consolidaria somente em meados do século XIX, graças ao sucesso de alguns empresários. No artigo “’Pois temos touros?’: as touradas no Rio de Janeiro do século XIX (1840-1952)” (2015), Victor Andrade de Melo procura apontar algumas fases como cruciais para a relativa consolidação da tauromaquia no Rio de Janeiro, mesmo que por períodos curtos. Uma das características das corridas de touros era o seu público diversificado, muito por conta do escalonamento dos preços dos ingressos e de outras promoções que constavam dos programas, por exemplo, como o “touro dos curiosos”, em que pessoas do público poderiam desafiar o touro e até mesmo ser premiado. Todavia, alguns aspectos geravam crítica por parte do público: de um lado, a desorganização e a baixa qualidade dos touros ou mesmo das instalações levavam o público a questionarem tal prática e, de outro, o fato de que a tauromaquia praticada à moda portuguesa remetia a um passado colonial que a nova nação brasileira pretendia superar em nome de processos “civilizatórios”, sobretudo no contato com outras modalidades, como o turfe e o remo. Além disso, criticava-se a tauromaquia também como um ato de “barbárie” contra animais indefesos.

Entretanto, as touradas também eram praticadas em outras partes do Brasil Imperial. No artigo “Tradição e modernidade: as touradas na Porto Alegre do século XIX” (2015), Cléber Eduardo Karls e Victor Andrade de Melo propõem um estudo sobre a realização de touradas em Porto Alegre, a partir de fontes jornalísticas, de acordo com um recorte temporal de 1875 a 1900. Os historiadores encontraram farto material em vários jornais da época, que lhes permitiram chegar a certas conclusões, como, por exemplo, o fato de que, pela forte presença de atividades pecuárias no Rio Grande do Sul, o suposto caráter “bárbaro” das touradas, com o flagelo e a morte do animal, não era motivo de crítica para o público em Porto Alegre. Além disso, a tauromaquia se inseria nos debates “civilizatórios”, em Porto Alegre, numa junção entre o rural e o urbano, o tradicional e o moderno.

Por fim, cabe um destaque especial ao artigo “O esporte: uma diversão no Rio de Janeiro do século XIX” (2015), em que Victor Andrade de Melo propõe uma abordagem histórica que, em primeiro lugar, leve em consideração a história dos entretenimentos no século XIX, na capital do Império. Para o historiador, o emprego do conceito de “lazer” implicaria em limitações com relação às práticas corporais do século XIX. Estas, ao contrário, deveriam ser consideradas a partir das noções de “diversão” e de “divertimento”, sem um necessário vínculo ao mudo do trabalho.

Referências Bibliográficas

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MARZANO, Andrea; MELO, Victor Andrade de (orgs.). Vida divertida: histórias do lazer no Rio de Janeiro (1830-1930). Rio de Janeiro: Apicuri, 2010. [Sport História]

MELO, Victor Andrade de. A sociabilidade britânica no Rio de Janeiro do século XIX: os clubes de cricket (1854-1901). Almanack. Guarulhos, n.16, p. 168-205, 2017. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/alm/n16/2236-4633-alm-16-00168.pdf; acesso em: 10 fev. 2019.

MELO, Victor Andrade. Antes do club: as primeiras experiências esportivas na capital do Império (1825-1851). Projeto História. São Paulo, v. 49, p. 197-236, abr. 2014. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/view/18308; acesso em: 10 fev. 2019.

MELO, Victor Andrade de. Educação do corpo – bailes no Rio de Janeiro do século XIX: o olhar de Paranhos. Educação Pesquisa. São Paulo, v. 40, n. 3, p. 751-766, jul./set. 2014. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ep/2014nahead/aop1410.pdf ; acesso em: 30 out. 2018.

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PRIORI, Mary Del. “Em casa fazendo graça”: domesticidade, família e lazer entre a Colônia e o Império. In: MARZANO, Andrea; MELO, Victor Andrade de (orgs.). Vida divertida: histórias do lazer no Rio de Janeiro (1830-1930). Rio de Janeiro: Apicuri, 2010, p. 17-47. [Sport História]

TERRA, Carlos Gonçalves. O prazer no jardim. In: MARZANO, Andrea; MELO, Victor Andrade de (orgs.). Vida divertida: histórias do lazer no Rio de Janeiro (1830-1930). Rio de Janeiro: Apicuri, 2010, p. 75-95. [Sport História] ZAMONER, Maristela. História da dança de salão no Brasil: São Paulo do século XIX. EFDeportes. Buenos Aires, n. 185, out. 2013. Disponível em: http://www.efdeportes.com/efd185/historia-da-danca-de-salao-no-brasil-seculo-xix.htm; acesso em: 10 fev. 2019.

Futebol e Lazer em dois contos de Antônio de Alcântara Machado

Elcio Loureiro Cornelsen

Desde os primórdios do futebol no Brasil, intelectuais não ficaram alheios àquela modalidade esportiva e de lazer que, gradativamente, ultrapassava os limites do ground e do field dos clubes nobres de cidades como São Paulo e Rio de Janeiro e alcançava os campos improvisados, as ruas e os terrenos baldios das cidades brasileiras. A crônica seria o gênero eleito por intelectuais para versarem sobre o esporte bretão, seja para criticá-lo, seja para louvá-lo. Numa seleta galeria figuram nomes como João do Rio, Coelho Neto, Lima Barreto, Graciliano Ramos, entre outros, que trouxeram o football para os debates nos salões literários.

No final da década de 1910, o futebol já iniciava a sua franca popularização, que se intensificaria nas décadas seguintes. Um dos grandes marcos literários da época foi o movimento modernista, capitaneado, entre outros, por escritores como Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Antônio de Alcântara Machado. E o futebol não ficou de fora do projeto modernista. Um dos expoentes da vanguarda paulista, Mário de Andrade fez uma referência ao futebol em sua obra prima, o romance Macunaíma (1928). De maneira inusitada, o “herói sem nenhum caráter”, ao mesmo tempo índio e negro, surgiria como o inventor do futebol em terras brasilis, em uma espécie de mito fundador antropofágico. Vejamos o trecho a seguir, extraído do capítulo “A francesa e o gigante”, em que os irmãos Manaape, Jiguê e Macunaíma encenam a invenção do futebol:

[…] O herói não maliciava nada. Vai, Jiguê pegou num tijolo, porém pra não machucar muito virou-o numa bola de couro duríssima. Passou a bola pra Maanape que estava mais a frente e Maanape com um pontapé mandou ela bater em Macunaíma. Esborrachou todo o nariz do herói. – Ui! Que o herói fez. Os manos bem sonsos gritaram: – Uai! Está doendo, mano! Pois quando bola bate na gente nem não dói! Macunaíma teve raiva e atirando a bola com o pé bem pra longe falou: – Sai, peste! Veio onde estavam os manos: – Não faço mais papiri, pronto! E virou tijolos pedras telhas ferragens numa nuvem de iças64 que tomou São Paulo por três dias. O bichinho caiu em Campinas. A taturana caiu por aí. A bola caiu no campo. E assim foi que Macunaíma inventou o bicho-do-café, Jiguê a lagarta-rosada e Macunaíma o futebol, três pragas. (ANDRADE, 1992, p. 62)

E a “praga” do futebol, como é designada pelo narrador do romance, se alastraria ainda mais nas décadas seguintes, tornando-se um dos traços culturais, esportivos e de lazer de grande significado para o Brasil. Outro expoente da vanguarda paulista, Oswald de Andrade, também abriu espaço para o futebol no célebre romance Memórias sentimentais de João Miramar (1924), no qual incluiu um poema intitulado “Bungalow das rosas e dos pontapés”, no qual o futebol aparece como parte de um cenário urbano:

Bondes gols
Aleguais
Noctâmbulos de matches campeões
E poeira
Com vesperais
Desenvoltas tennis girls
No Paulistano
Paso doble. (ANDRADE, 1967, p. 123)

De acordo com o historiador Bernardo Borges Buarque de Hollanda,

Oswald de Andrade registra com seus versos livres, em forma de instantâneos fotográficos, a mesma presença do futebol na cidade moderna de São Paulo. Ao lado dos bondes eletrificados, elemento simbólico do progresso […], bem como da eletricidade de modo geral, que possibilita as primeiras partidas noturnas na cidade, em princípio dos anos 1920, os gols integram-se a esse novo tempo de agitação e frenesi que contagia as grandes metrópoles sob o influxo da modernização. (HOLLANDA, 2015, p. 26-27)

O poema “Bungalow das rosas e dos pontapés” é composto por uma única estrofe que contém 08 versos livres, ou seja, com métricas variáveis. Em seu segundo verso, composto apenas pela palavra “Aleguais”, temos uma gíria do jargão do futebol nos anos 1920: de acordo com o dicionário Aulete, tal expressão teria sido um dos primeiros “cantos de guerra” da torcida brasileira, que teria origem no enunciado “Allez! Go! Hack!”, transformado em “Aleguá-guá-guá”. E segundo o historiador Bernardo Borges Buarque de Holanda,

[a] palavra “Aleguais”, por exemplo, era um grito usual no período, abrasileiramento de uma expressão francesa. Com ela, o torcedor paulistano tradicionalmente comemorava o gol de sua equipe. A bem dizer, tratava-se de uma interjeição similar a outra bem comum á época, ‘hip, hip, hurrah’, dos torcedores no Rio de Janeiro. (HOLLANDA, 2015, p. 27)

Se em Macunaíma o futebol surge numa linha de passe entre os irmãos Manaape, Jiguê e Macunaíma, em Memórias sentimentais de João Miramar o futebol já faz parte do cenário urbano da “pauliceia desvairada”, e os “aleguais” atestam que o esporte bretão já era parte do lazer daqueles que acorriam aos clubes – no caso, o tradicional Clube Athletico Paulistano – para vibrar e torcer por seus times.

Entretanto, seria em dois contos de Antônio de Alcântara Machado, publicados na obra Brás, Bexiga e Barra Funda (1927), que o futebol surgiria como lazer para garotos do bairro étnico do Brás. O primeiro deles é “Gaetaninho”, em que o protagonista, filho de italianos, gostava de jogar bola na rua. Como em flashes, o narrador assim se refere à habilidade de Gaetaninho que, mesmo quando tentava fugir das chineladas de sua mãe, valia-se da ginga do futebol: “Balançou o corpo. Recurso de campeão de futebol. Fingiu tomar a direita. Mas deu meia-volta instantânea e varou pela esquerda porta adentro. Eta salame de mestre!” (MACHADO, 2010, p. 27). E os jogos na rua representavam o momento de lazer dos meninos: “O jogo na calçada parecia de vida ou morte” (MACHADO, 2010, p. 28). Nino, Beppino e Gaetaninho jogavam futebol animados:

Beppino deu dois passos e meteu o pé na bola. Com todo o muque. Ele cobriu o guardião sardento e foi parar no meio da rua.
─ Vá dar tiro no inferno!
─ Cala a boca, palestrino!
─ Traga a bola!
Gaetaninho saiu correndo. Antes de alcançar a bola, um bonde o pegou. Pegou e matou. No bonde vinha o pai de Gaetaninho. (MACHADO, 2010, p. 28)

Além do momento trágico alcançado no conto com o atropelamento e morte de Gaetaninho, ironicamente, ele realizou seu sonho de um dia poder andar de carro, como o Beppino já havia feito no início do conto, ao acompanhar o féretro da Tia Peronetta, que fora sepultada no Cemitério do Araçá. Gaetaninho seria levado para o cemitério de carro: “Às dezesseis horas do dia seguinte saiu um enterro da Rua do Oriente e Gaetaninho caixão fechado com flores pobres em cima” (MACHADO, 2010, p. 29).

Portanto, nesse conto de Antônio de Alcântara Machado, o futebol aparece como prática urbana de lazer em um bairro étnico, com vários representantes da colônia italiana de São Paulo. Com todos os riscos que se corria ao se jogar bola nas calçadas e vias, com um trânsito já em expansão no final da década de 1920, o protagonista acaba sendo vitimado por correr atrás de uma bola perdida sem prestar atenção e acaba atropelado por um bonde.

Entretanto, é no conto “Corinthians 2 x Palestra 1” que o futebol ganha maiores contornos enquanto lazer. Numa disputa entre dois dos principais clubes de São Paulo, o Sport Club Corinthians Paulista, fundado em 1910, e o Palestra Itália, fundado em 1914, time da colônia italiana, constroi-se uma imagem do torcer como lazer. No estádio do Parque Antártica, os torcedores vibram com seus times:

[…] Em torno do trapézio verde a ânsia de vinte mil pessoas. De olhos ávidos. De nervos elétricos. De preto. De branco. De azul. De vermelho.
Delírio futebolístico no Parque Antártica. (MACHADO, 1993, p. 32)

Quando o Corinthians marca o primeiro tento, as arquibancadas extravasam a emoção:

─ Aleguá-guá-guá! Aleguá-guá-guá! Urrá-urrá! Corinthians!
Palhetas subiram no ar. Com os gritos. Entusiasmos rugiam. Pulavam. Dançavam. E as mãos batendo nas bocas:
─ Go-o-o-o-o-o-ol! (MACHADO, 1993, p. 33)

Nota-se que o narrador se esmera em descrever algo que é da ordem da performance do torcedor, como movimentos corporais, gestos e cânticos. E os torcedores do Palestra Itália também tiveram o seu momento de euforia:

Matias centrou. A assistência silenciou. Imparato emendou. A assistência berrou.
─ Palestra! Palestra! Aleguá-guá! Palestra! Aleguá! Aleguá! (MACHADO, 1993, p. 34)

E o comportamento da torcida também é tema em um lance da arbitragem:

Mas o juiz marcou um impedimento.
─ Vendido! Bandido! Assassino!
Turumbamba na arquibancada.
[…]
─ Nem torcer a gente pode mais! Nunca vi! (MACHADO, 1993, p. 35)

Após o Corinthians marcar o segundo gol e findar a partida, as ruas da cidade foram tomadas pelos torcedores eufóricos pela vitória de seu time: “A alegria dos vitoriosos demandou a cidade. Berrando, assobiando e cantando” (MACHADO, 1993, p. 39).

A título de conclusão, reconhece-se que esses flashes urbanos ficcionais da Paulicéia no final da década de 1920 evidenciam a crescente popularização pela qual o futebol passava, como lazer para muitos, seja nos jogos dos garotos no Brás, seja no comportamento dos torcedores nas arquibancadas do estádio do Palestra Itália diante de um clássico reunindo dois clubes cada vez mais populares naquela época. Essas cenas da vida cotidiana, de Brás, Bexiga e Barra Funda, pautadas pelas trivialidades e pelo corriqueiro, fazem desfilar seus tipos humanos em meio a eventos hilários ou trágicos, em que o futebol aparece como um momento de lazer.

Referências

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