Ruas de Lazer e participação social

No último texto que escrevi para este blog em maio de 2022, compartilhei com os leitores uma experiência pessoal sobre a primeira vez que fui ao cinema. A memória descrita serviu de ilustração para a discussão sobre o menor poder de escolha que alguns cidadãos possuem no que se refere às suas práticas de lazer em seus cotidianos.

Ainda instigada por essa discussão, avanço um pouco sobre o que apresentei naquele texto, trazendo agora uma reflexão a respeito da participação social no fortalecimento da cidadania, reconhecendo a urgente necessidade de que o cidadão seja escutado e assim participe de forma real dos processos políticos que lhes dizem respeito.

Recordo que no âmbito das políticas públicas de lazer, ainda na época da graduação, tive um primeiro contato com a discussão a respeito das Ruas de Lazer. Mais tarde, em 2021, escrevi um artigo que tratou especificamente dos traçados históricos das Ruas de Lazer em São Paulo e sua influência na “abertura” da Av. Paulista para os pedestres a partir de 2015 em eventos testes e de forma oficial em 2016.

No referido artigo, que visitou um pouco da história acerca do início das Ruas de Lazer em São Paulo, revelou que este Programa Municipal nasceu do desejo e insistência de uma moradora da Zona Leste paulista. Dirce Vieira, após dois anos de negociações com a Prefeitura, conseguiu em 1976 o direito de interditar aos domingos e feriados a rua Manoel Faria Inojosa em São Miguel Paulista, local no qual residia (EUGENIO, 2021).

O pedido de Dirce junto à Prefeitura se apoiava na justificativa de que, ao fechar a rua para os veículos, aquele espaço serviria para as crianças brincarem aos domingos e feriados (SÁ, GARCIA e ANDRADE, 2017). O que me interessa de maneira singular, pois, na prática, podemos enxergar na iniciativa liderada por essa cidadã um exemplo simples de participação direta da sociedade civil na conquista de seus direitos; neste caso, do direito ao lazer.

É sabido que o Programa Ruas de Lazer de São Paulo foi inspirado nas chamadas Ruas de Recreio presentes na cidade do Rio de Janeiro desde 1957, sendo estas últimas idealizadas pelo professor de Educação Física Alfredo Colombo, com o intuito de ofertar atividades recreativas orientadas para crianças (ROSA e FERREIRA, 2019). Entretanto, ainda que as Ruas de Recreio sejam consideradas percursoras das Ruas de Lazer, compreendo que, em sua gênese, estas últimas são uma iniciativa que parte do desejo dos cidadãos até à chancela do poder público municipal e, não o contrário.

Para uma via fazer parte do Programa Ruas de Lazer de São Paulo é exigido uma solicitação assinada por 80% dos moradores da própria rua que pleiteia a chancela do programa (CORDEIRO, MELLO e BASTOS, 2019). Há também o pré-requisito da existência de um conselho formado por moradores da rua, uma vez que serão estes os responsáveis pelo fechamento, coordenação e planejamento das atividades junto à Secretaria Municipal de Esportes, Lazer e Recreação – SEME (MEKARI, 2014).

Vê-se então que o Programa Ruas de Lazer possui em seu bojo a noção de participação social desde de sua criação, por meio do apelo popular liderado por Dirce Vieira, até a sua execução que só é possível com a formação de um conselho de moradores da própria rua. O que me remete a definição de Milani (2008) sobre participação social cidadã que:

é aquela que configura formas de intervenção individual e coletiva, que supõem redes de interação variadas e complexas determinadas (provenientes da “qualidade” da cidadania) por relações entre pessoas, grupos e instituições como o Estado. A participação social deriva de uma concepção de cidadania ativa. (MILANI, 2008, p. 560)

Não obstante, me parece que em nosso país vivenciamos certo distanciamento entre sociedade civil e Estado, nos afastando concomitantemente do exercício da cidadania ativa descrita por Milani (2008). Cenário que acredito aumentar quanto mais distantes estivermos dos processos decisórios e de negociações que nos envolvam enquanto cidadãos. Isso porque concordo com Pateman (1992) que quanto maior a aproximação dos cidadãos do Estado por meio da participação ativa mais qualificados e aptos estaremos a participar; quer seja esta participação por meio de grupos organizados ou mesmo em suas individualidades exercendo nossos direitos e deveres.

A respeito das Ruas de Lazer em São Paulo, atualmente o Programa conta com o apoio empresas privadas, empresas de organização mista e instituições do terceiro setor, não sendo o financiamento das atividades ofertadas somente de responsabilidade da Secretaria Municipal de Esportes, Lazer e Recreação – SEME (EUGENIO, 2021). De 1976 até o ano de 2014, haviam 1058 ruas cadastradas como Ruas de Lazer, sendo apontado pela SEME no entanto que, em 70% destas ruas mesmo o tráfego sendo interrompido não haviam mais atividades de lazer (PENINA, 2020).

O principal motivo para o enfraquecimento do Programa, segundo a SEME tem relação direta com a baixa participação e mobilização dos moradores da rua nas atividades (São Paulo São, 2018), o que eu entendo que possa ser explicado também por questões relacionadas à segurança pública e diferentes motivos relativos ao próprio consumo de lazer das famílias após o findar do século XX. Ao encontro disso, a pesquisa de Stoppa et al. (2011) indicou que até 2010 as ruas nas quais o Programa Ruas de Lazer ainda tinha êxito era justamente aquelas nas quais os moradores ainda estavam motivados e ativos em seus conselhos para a organização das atividades.   

Atualmente, o Programa Ruas de Lazer ainda resiste em São Paulo, mesmo que em 2016 tenha sido oficializado o Programa Ruas Abertas que guarda similaridades com as Ruas de Lazer. As principais semelhanças entre os programas estão no seu processo de criação – sendo ambas reivindicações dos cidadãos – e no argumento central defendido pelos programas que reivindicam o uso da rua para todos, especialmente para as atividades de lazer (PIMENTEL e CARRANZA, 2020). Faz-se importante ressaltar, contudo, que o Programa Ruas Abertas ampliou tal argumento central, adotando o discurso de que as vias como a Paulista deveriam ser apropriadas pelo maior número de pessoas, sem especificar as formas de usufruto das mesmas (BASTOS; MELLO, 2017a). O que pode ser notado na prática, visto que a mesma também é utilizada amplamente durante sua abertura aos domingos e feriados por trabalhadores autônomos das mais variadas vertentes.   

Referente às diferenças entre os programas, dois pontos se destacam: quanto à organização das atividades e o alcance das mesmas. Se nas Ruas de Lazer temos um conselho formado por moradores planejando e organizando as atividades a partir das demandas daqueles que residem naquela via (MEKARI, 2014); nas Ruas de Abertas as ações não contam com organização de um conselho único, há na verdade, simultâneas e variadas atividades, ações e intervenções que vão desde apresentações musicais, até aulas promovidas ao ar livre por academias de ginástica ou professores autônomos (LEME, 2017). Conjuntura esta que nos leva à diferenciação entre o alcance e público dos programas. Ora, enquanto nas Ruas de Lazer a maioria dos frequentadores são moradores do próprio bairro, nas Ruas Abertas, especificamente na Av. Paulista, o público é variado, sendo a abertura da mesma aos domingos e feriados considerada por si só um atrativo turístico (SÁ, GARCIA e ANDRADE, 2017; SABINO e PAIM, 2020).

A partir do que fora brevemente exposto neste texto, retomo a reflexão a respeito do envolvimento e participação social dos cidadãos na esfera pública, reconhecendo a importância do seu engajamento na conquista de seus direitos. Os Programas Ruas de Lazer e Ruas Abertas demonstraram, no campo do lazer e política pública, que a participação social foi o motor para o desenvolvimento de ambos; sendo na década de 1970 uma cidadã responsável por este impulso e, posteriormente em 2016, coletivos e grupos organizados. Nas duas ocasiões o objetivo principal era a reivindicação da rua como um espaço para convivência e lazer (MELLO, BASTOS e LACERDA, 2020), o que foi/é de fato desenvolvido nos programas ainda hoje mesmo em novos contextos.

Assim, os Programas Ruas de Lazer e Ruas Abertas nos permite reconhecer que o exercício da cidadania não ocorre afastado da participação social. Ao contrário, é por meio da participação social que tomamos mais conhecimento sobre nossos direitos e deveres, podemos assim conquistá-los ou contestá-los, nos levando à construção de uma sociedade mais democrática.

Referências

BASTOS, A. F. S.; MELLO, S. C. B. Paulista aberta: significados da avenida símbolo da cidade de São Paulo. URBANA: Revista Eletrônica Do Centro Interdisciplinar De Estudos Sobre a Cidade, v. 9, n. 3, p. 521-539, 2017a. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/urbana/article/view/8649610. Acesso em 13 de janeiro de 2023.

CORDEIRO, A. T., MELLO, S. C. B., e BASTOS, A. F. S. Aqui é a nossa praia! Apropriação e uso da avenida paulista no contexto de políticas de desenvolvimento urbano. urbe. Revista Brasileira de Gestão Urbana, 11, 2019. Disponível em: https://doi.org/10.1590/2175-3369.011.e20180104. Acesso em 13 de janeiro de 2023.

EUGENIO, O. J. Os traçados históricos das ruas de lazer presentes na “abertura” da Avenida Paulista. Caminhos da História, v.26, n.1 (jan./jun.2021). Disponível em:https://www.periodicos.unimontes.br/index.php/caminhosdahistoria/article/view/3696  . Acesso em 13 de janeiro de 2023.

LEME, A. Avenida Paulista aos domingos vira calçadão democrático. 2017. In: Veja São Paulo. Disponível em: https://vejasp.abril.com.br/cidades/capa-avenida-paulista-passeio/.Acesso em 13 de janeiro de 2023.

MELLO, BASTOS e LACERDA. Lutas urbanas no cais Mauá e na Avenida Paulista: metodologia qualitativa para compreensão de transformações no espaço público das cidades. Revista Movimentos Sociais e Dinâmicas Espaciais, Recife, Volume 9, 2020 (106-124). ISSN 2238-8052.

MEKARI, D. Ruas de Lazer: liberdade e autonomia para as crianças. Portal Aprendiz UOL. 2014. Disponível em: https://portal.aprendiz.uol.com.br/ 2014/04/10/ruas-de-lazer- liberdadeeautonomia-para-as-criancas/. Acesso em 13 de janeiro de 2023.

MILANI, C. R. S. O princípio da participação social na gestão de políticas públicas locais: uma análise de experiências latino-americanas e europeias. RAP-Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, v. 42, n. 3, p. 551-579, maio/jun. 2008.

Pateman, C. (1992). Participação e teoria democrática. Rio de Janeiro: Paz e Terra.

PENINA, M. Programa “Ruas de Lazer” é reformulado para incentivar ocupação do espaço público. 2020. In: Catraca Livre. Disponível em: https://catracalivre.com.br/catraquinha/programa-ruas-de-lazer-e-reformulado-para-incentivar-ocupacao-do-espacopublico/. Acesso em 13 de janeiro de 2023.

PIMENTEL, B.L.E., e CARRANZA, E.G. Uma discussão sobre transformações recentes da Avenida Paulista. Revista 5% Arquitetura + Arte, ano 15,01(19)1-16, jan./jun., 2020. Disponível em: http://revista5.arquitetonica.com/ojs/index.php/ revista5/article/view/133. Acesso em 13 de janeiro de 2023.

ROSA, M.C.; FERREIRA, J. T. A. Ruas de recreio na cidade de Belo Horizonte (fim da década de 1950 até 1980). Rev. Bras. Ciênc. Esporte, Porto Alegre, v. 41, n. 4, p. 451- 457, Oct. 2019. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010132892019000400451&lng=en&nrm=iso&gt;. Acesso em 13 de janeiro de 2023.

SÁ, T.H.; GARCIA, L.M.T., e ANDRADE, D.R. Reflexões sobre os benefícios da integração dos programas Ruas de Lazer e Ciclofaixas de Lazer em São Paulo. Revista Brasileira de Atividade Física & Saúde; 22(1)5-12, 2017. Disponível em:https://rbafs.org.br/RBAFS/article/view/7767. Acesso em 13 de janeiro de 2023.

SABINO, L. e PAIM, C. Abrir ruas para as pessoas estimula o comércio e ativa as fachadas. In: Caos Planejado. 2020. Disponível em: https://caosplanejado.com/abrir-ruas-para-aspessoas-estimula-o-comercio-e-ativa-as-fachadas/. Acesso em 13 de janeiro de 2023.

SÃO PAULO SÃO. “Ruas de Lazer”: nos anos 70, brincadeira era na rua e aos domingos. 2018. Disponível em: https://saopaulosao.com.br/nossos-encontros/742-ruas-de-lazer-nosanos-70,-brincadeira-era-na-rua-e-aosdomingos.html#. Acesso: 13 de janeiro de 2023.

STOPPA, E. A., et al. Gestão de Esporte e Lazer: análise dos espaços e equipamentos de esporte recreativo e de lazer em Ermelino Matarazzo, Zona Leste de São Paulo. São Paulo: Plêiade; 2011.