Breve análise das contribuições de Milton Santos para os estudos sobre lazer e cidade: O conceito de “território usado”

Simone Rechia

Esta reflexão faz parte dos estudos e debates oriundos do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Lazer, Espaço e Cidade – GEPLEC. É importante alertar para o fato de que nossas pesquisas estão em andamento, fato que certamente gerará novos elementos, interpretações e indagações sobre a produção intelectual do fenômeno do lazer das/nas cidades a partir da obra de Milton Santos.

Milton Santos foi um importante professor/pesquisador brasileiro, que revolucionou os estudos e pesquisas ligadas à geografia humana. Suas elaborações teórico-metodológicas foram reproduzidas tanto no nosso país quanto no exterior e romperam paradigmas cristalizados no âmbito das Ciências Humanas e Sociais.

Mesmo tendo larga produção intelectual e sendo reconhecido internacionalmente como um dos principais geógrafos contemporâneos, ainda é pouco estudado e compreendido no Brasil, fruto, talvez, de uma prática acadêmica conservadora que valoriza pesquisadores de outros países em detrimento de intelectuais brasileiros. Entretanto, saliento que, a partir dos estudos e mapeamentos sobre a produção cientifica no âmbito do lazer e cidades, realizados no GEPLEC, concluímos que pesquisadores dedicados a essas temáticas já buscam corrigir ou atenuar tal lógica por considerarem   Milton Santos e suas elaborações teórico-metodológicas envolvendo os conceitos de espaço, lugar, território, cidadania, globalização, entre outros, fundamentais nesses estudos.

Assim, as obras de Milton Santos foram atentamente lidas e relidas no GEPLEC, gerando algumas sínteses que apresentamos e divulgamos em diferentes produções acadêmicas como: teses, dissertações, artigos científicos, capítulos de livros, etc. Portanto, aqui não pretendo, evidentemente, aprofundar uma temática tão complexa como o conceito de território usado, mas indicar e motivar os leitores a acessar tais obras.

Território Usado:

Observa-se que o conceito de território muitas vezes se refere à concepção de poder, resultante de questões jurídicas ou políticas, porém autores vinculados à geografia humana destacam que as questões simbólicas e culturais são também elementos constituintes de territorialidades. Partem da ideia de que enquanto espaço-tempo vivido, o território é sempre diverso, complexo, multifacetado, dinâmico, influenciado pela cultura local e global, ao contrário do território estático, “unifuncional” e massificado, proposto pela lógica capitalista hegemônica, preocupada somente com o valor econômico de cada “pedaço de território”.

Dessa maneira, Haesbaert (2005, p.1-2) reforça que é primordial considerarmos a dimensão da cultura na constituição dos territórios, o que significa admitir que o território nessa concepção “desdobra-se ao longo de um continuum que vai da dominação político-econômica mais ‘concreta’ e ‘funcional’ à apropriação mais subjetiva e/ou ‘cultural-simbólica”.

De acordo com Haesbaert (2005, p.2), “território, assim, em qualquer acepção, tem a ver com poder, mas não apenas ao tradicional ‘poder político’. Ele diz respeito tanto ao poder no sentido mais concreto, de dominação, quanto ao poder no sentido mais simbólico, de apropriaçãopage2image6261376.

Nesse sentido, o território local é o palco onde as identidades culturais se manifestam. E de acordo com Santos (2009, p.246),

“No decorrer da história das civilizações, as regiões foram configurando-se por meio de processos orgânicos, expressos através da territorialidade absoluta de um grupo, onde prevaleciam suas características de identidade, exclusividade e limites, devidas à única presença desse grupo, sem outra mediação. A diferença entre áreas se devia a essa relação direta com o entorno. Podemos dizer que, então, a solidariedade característica da região ocorria, quase que exclusivamente, em função dos arranjos locais. Mas a velocidade das transformações mundiais deste século, aceleradas vertiginosamente no após-guerra, fizeram com que a configuração regional do passado desmoronasse”.

Parece haver uma tendência a crer que todos os lugares são territórios do mundo e, portanto, iguais, homogêneos. Desconsiderando a ideia de culturas, identidades, solidariedade, trocas, ajuda mútua, vida coletiva, experiências singulares em espaços públicos. Presenciamos, com isso, um processo de globalização do mercado cultural, que busca homogeneizar a vida cotidiana das pessoas em todas as cidades, independente das diferenças culturais, educacionais, políticas, históricas ou econômicas, que são extremamente distintas de territórios para territórios.

Milton Santos (2009) salienta que o território e o lugar passaram a ser condicionados por interesses globais, em geral das grandes corporações, as quais regulamentam normas do território e o valor do lugar. Porém a construção da territorialidade é mediada na vida cotidiana, tanto pelas dimensões econômicas e políticas quanto pela dimensão cultural.

Aqui gostaria de salientar a dimensão Cultural do território, que seria a valorização da dimensão simbólica e subjetiva, em que o território é visto como resultado do produto da apropriação/valorização simbólica de um grupo em relação ao seu espaço vivido. O que poderíamos considerar como o “espaço praticado” (CERTEAU, 2014, p.41). 

Nessa perspectiva o território se torna dinâmico, porque os sujeitos o tornam pulsante, caracterizando o espaço a partir de diferentes territorialidades. Pois, ao territorializar determinado espaço, o sujeito desloca sua identidade particular para o coletivo. Torna-se importante, nesse sentido, entender cada bairro de uma cidade como um microcosmo pleno de vida rica, densa de significados.

Milton Santos reafirma que o território é o espaço físico mais a identidade, mostrando a importância da organização social para a formação do território.

“O território não é apenas o conjunto dos sistemas naturais e de sistemas de coisas superpostas. O território tem que ser entendido como território usado, não o território em si. O território usado é o chão mais a identidade. A identidade é o sentimento de pertencer aquilo que nos pertence. O território é o fundamento do trabalho, o lugar da residência, das trocas materiais e espirituais e do exercício da vida (SANTOS, 2002, p. 10).

Afirma Santos (2002, p.232),

“Ao mesmo tempo, parcelas significativas do espaço geográfico, situadas sobretudo nas cidades (especialmente as grandes cidades dos países subdesenvolvidos), escapam aos rigores das normas rígidas. Velhos objetos e ações menos informadas e menos racionais constroem paralelamente um tecido em que a vida, inspirada em relações pessoais mais diretas e mais frequentes e menos pragmáticas, pode ser vivida na emoção e o intercâmbio entre os homens, pois é criador de cultura e de recursos econômicos”.

Fugir das normas rígidas, que para Certeau (2014) são chamadas de “estratégias”, gera também “táticas” e “astúcias” empregadas pelos sujeitos para produzir novas formas de lidar com as normas que lhes são impostas. Isso se manifesta, por exemplo, na criação de uma nova forma de jogar, brincar ou usar as estruturas das cidades (ruas, gramados, muros, escadas, entre outros) em função de alguma proibição. Neste sentido, estas criações são formas de subversão às ordens impostas na apropriação de um espaço, que podem ser vividos na emoção.

De acordo com Santos (2002, p.61), “a cultura e territorialidade são, de certo modo, sinônimos”. Pois a cultura é resultado do processo de viver, das relações sociais, assim como a territorialidade é resultado do processo de ocupação do espaço, das relações estabelecidas entre as pessoas e o seu meio.

O autor também faz um alerta (2002, p.61)

A “desterritorialização pode significar alienação, estranhamento, que são, também, desculturização. – processos comuns da globalização cuja tendência é homogeneizar a vida cotidiana a partir da adoção de hábitos de vida adotados de forma massificada”.

Diante disso é importante, nos espaços urbanos, compreender que o território usado reinventa-se a todo instante a partir de influencias identitárias globalizadas que tencionam  a identidade local, tradicional. Isto é, ao mesmo tempo, que é desterritorializado da sua identidade original é logo reterriorializado culturalmente por uma nova identidade local, criativa, inventiva, popular, singular e produzida em determinados territórios. Nessa perspectiva as experiências de lazer se apresentam no território usado como:

 “(…) dimensão da vida e, portanto, um fenômeno sociocultural, amplo e complexo, historicamente mutável, central para a análise da sociedade, o qual envolve questões identitárias, políticas, de sociabilidade e desenvolvimento dos sujeitos, numa perspectiva orgânica e processual, o que implica a análise de três polos distintos, porém complementares espaço, tempo e ludicidade, potencializados nos ambientes públicos urbanos” (RECHIA, 2017)

Por que as experiências de lazer podem ser fundamentais para a vida cotidiana das/nas cidades? 

Porque “Felicidade se acha é só em horinhas de descuido…”

(‘Conto Barra da vaca’, Livro Tutameia, 2009)

Referencias e dicas de leituras:

  • CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 2014.
  • HAESBAERT, Rogério. Dos múltiplos territórios á multiterritorialidade. Porto Alegre. 2005. Disponível em: https://www.ufrgs.br/petgea/Artigo/rh.pdf
  • RECHIA, S. Atividades Físicas e Esportivas e as Cidades. Movimento é vida! atividades físicas e esportivas para todas as pessoas. Relatório Nacional de Desenvolvimento Humano do Brasil. 1ed.Brasilia: PNUD – Programa das Nações Unidas para o desenvolvimento, 2017.
  • RECHIA, Simone. Espaços públicos de lazer, esporte e cultura: um menu da cidade de Curitiba/Paraná. Ed. Unijuí.  Disponível em: https://www.editoraunijui.com.br/produto/2345
  • SANTOS, M. O dinheiro e o território. In: Geographia, Universidade de São Paulo, ano 1, nº 1, 1999, p. 8
  • SANTOS, M. Por uma Geografia Nova. São Paulo: Hucitec, Edusp, 1978.
  • SANTOS, M. Espaço e Sociedade. Petrópolis: Vozes, 1979.
  • SANTOS, M. Pensando o espaço do homem. São Paulo: Hucitec, 1982.
  • SANTOS, M. Espaço e método. São Paulo: Nobel, 1985.
  • SANTOS, M. Metamorfoses do espaço habitado. São Paulo: Hucitec, 1988.
  • SANTOS, M. Território globalização e fragmentação. São Paulo: Hucitec, 1994.
  •  SANTOS, M. A natureza do espaço – Técnica e tempo. Razão e emoção. São Paulo: Hucitec, 4ª ed. 2009.
  • SANTOS, M. O espaço do cidadão. São Paulo: Nobel, 6ª ed, 2002
  • SANTOS, M. País Distorcido, O Brasil, A globalização e a Cidadania (organização, apresentação e notas de Wagner Costa Ribeiro e ensaio de Carlos Walter Porto Gonçalves), PUBLIFOLHA, São Paulo, 2002