Stebbins e a “Perspectiva do lazer sério”

Christianne Luce Gomes

No contexto internacional, Robert Stebbins e o conceito serious leisure por ele elaborado são amplamente conhecidos, citados e adotados como referência para fundamentar muitas pesquisa teóricas e empíricas que vêm sendo realizadas sobre o lazer em diversos países.

Na oportunidade de participar de diferentes conferências internacionais, em especial do Congresso Mundial do Lazer e do Comitê Científico 13 – Sociologia do Lazer – da Associação Internacional de Sociologia, verifiquei que o autor comparece nesses eventos sempre que possível, evidenciando ser um profissional experiente, respeitado e dedicado à sua produção teórica, além de ser uma pessoa cordial e acessível. Considerando a notoriedade de Stebbins e a ressonância acadêmica de seu conceito, compartilho aqui algumas ideias sobre eles.

O website dedicado à “Perspectiva do lazer sério” (SLP), lançado em 2006 (https://www.seriousleisure.net/), foi desenvolvido por Stebbins em parceria com a professora Jenna Hartel, que trabalha na Universidade de Toronto. O site apresenta a biografia do autor: Robert A. Stebbins nasceu nos Estados Unidos em 1938 e, em 1980, naturalizou-se como cidadão canadense. Antes disso, em 1964, obteve o título de Ph.D. em Sociologia pela Universidade de Minnesota.

Foi professor de sociologia em várias instituições americanas e canadenses e, a partir de 1976, passou a lecionar na Universidade de Calgary, no Canadá, e mantém vínculos acadêmicos com essa instituição até o presente. Stebbins foi agraciado por esta universidade com o título de professor emérito. Seu currículo disponível na internet, datado de setembro de 2021, registra inúmeras atividades relevantes, entre as quais eu destaco as atividades de liderança exercidas em diferentes organizações, a publicação de diversos livros e artigos, e as distintas premiações e títulos honoríficos por ele recebidos (https://soci.ucalgary.ca/manageprofile/profiles/208-180124/robert-stebbins-cv.pdf).

Identifiquei poucas publicações sobre serious leisure no Brasil e, como exemplos, podem ser citados os artigos de Oliveira e Doll (2014), Doll e colaboradores (2019), Ribeiro e Santos (2020). Embora a interpretação mais adequada de serious leisure seja, do meu ponto de vista, “lazer levado a sério”, em nosso país prevalece a tradução literal do conceito: “lazer sério”. Por isso, neste texto eu usarei o termo entre aspas.

Cabe ressaltar que a revista RBEL publicou, em seu 1º número, um artigo do próprio Stebbins (2014) traduzido para o português, intitulado “Quando o trabalho é essencialmente lazer”. Este artigo faz parte de um dossiê sobre Compreensões e significados de lazer, organizado por Ricardo Uvinha. Além deste, o autor publicou mais alguns artigos em português e recomendo a sua leitura (Stebbins, 2016; 2014).

Foi na década de 1970 que Stebbins começou suas pesquisas sobre “amadores” de determinadas atividades e se interessou pelos estudos do lazer. À medida que o autor foi aprofundando conhecimentos sobre o tema, publicou diversos trabalhos sobre amadores, hobbistas (músicos, atores, esportistas, etc), e sobre pessoas envolvidas com trabalhos voluntários. Entre essas publicações, destaco três artigos: no primeiro deles, o autor faz uma “declaração conceitual” sobre o “lazer sério” usando como referência de comparação o que ele denominou de “lazer casual” (Stebbins, 1982). Dando continuidade a essa sistematização, cerca de 15 anos depois ele publicou um artigo para fundamentar melhor o “lazer casual” (Stebbins, 1997). Posteriormente, o autor propôs mais uma categoria, o “lazer baseado em projetos” (Stebbins, 2005). A seguir serão feitas algumas considerações sobre eles.

O “lazer casual” é uma atividade prazerosa e intrinsecamente gratificante que as pessoas realizam no tempo livre. Esse tipo de lazer geralmente não requer nenhum tipo de treinamento especial para ser desfrutado e tem uma duração relativamente curta. Tem caráter hedonista, ou seja, sua principal finalidade é a busca do prazer proporcionado pela atividade, seja ela um jogo, uma brincadeira, um passeio, assistir TV e conversar com amigos, entre outros passatempos.

Apesar da natureza aparentemente trivial da maioria das atividades de “lazer casual”, o autor afirma que ele é importante para a vida pessoal e social. O lazer casual, contudo, graças ao “seu hedonismo passageiro, está sujeito a perder seu apelo e ficar à deriva em direção aos baixos níveis de satisfação e insatisfação de curto prazo (isso se estiver completamente fora da zona do tédio).” (Stebbins, 2014, s.p.).

O “lazer sério” traduz a busca sistemática de uma atividade interessante e gratificante por parte de amadores, hobbistas ou voluntários. Ao levar a sério o lazer, os participantes se dispõem a seguir um percurso e constroem uma “carreira”, ou seja, se engajam visando adquirir e expressar habilidades especiais, conhecimentos e experiência.

O “lazer sério” se diferencia do casual porque apresenta algumas características específicas: a) perseverança na atividade de lazer escolhida, b) disponibilidade para construir uma “carreira” de lazer, c) empenho para obter conhecimentos e habilidades, d) valorização de benefícios especiais, e) partilha de um “ethos” e construção de um mundo social particular, com regras seguidas por todos, e f) constituição de identidades.

Finalmente, o “lazer baseado em projeto” é um empreendimento ocasional e criativo de curto prazo, realizado com intervalos regulares, que pode ser interrompido por várias semanas, meses ou anos. Apesar de envolver um planejamento e demandar dedicação, é diferente das outras formas de lazer (sério e casual). Alguns exemplos são os eventos esportivos, os festivais artísticos e as festas comemorativas que são fruto de um planejamento e evidenciam criatividade, habilidade e/ou conhecimento.

O autor considera que essas três formas principais de lazer (sério, casual ou baseado em projetos) são importantes, podem ser vivenciados de maneira satisfatória ou gratificante e gerar autorrealização. Cada uma dessas formas possui diferentes tipos/subtipos e este conjunto compõe um quadro teórico que Stebbins denomina de “Perspectiva do Lazer Sério”, cuja sigla em inglês é SLP. Essa perspectiva une e sintetiza as três principais formas de lazer, representando uma maneira de compreender o nível de envolvimento que as pessoas estabelecem com as atividades de lazer.

Como já foi mencionado, esta estrutura conceitual vem fundamentando várias pesquisas sobre o lazer, desenvolvidas por pesquisadores de diferentes países. Embora seja uma proposta interessante, sobre ela recaem várias críticas, conforme evidenciado pelos estudos realizados por Gallant (2017). A autora considera que o “lazer sério” é uma definição estática e, desde que foi elaborada na década de 1970, evoluiu pouco e não representa adequadamente a experiência de lazer na sociedade contemporânea.Mesmo sendo altamente utilizada para compreender a experiência do lazer comprometido e ir além das conceituações do lazer como algo casual e inconsequente para os indivíduos, a PSL se assemelha a uma tipologia de atividades de lazer.

Outra limitação da PSL é a relação “dicotômica” entre a natureza séria e casual do lazer: além de não ser suficientemente explorada, esta dicotomia é problemática. Por um lado, ambas as formas do lazer podem se sobrepor e, por outro, o “lazer sério” acaba sendo mais importante do que o “casual” devido aos benefícios que, supostamente, o primeiro proporciona. O “lazer sério” é definido pela necessidade ocasional de perseverar, mas as restrições que podem inibir a participação ou a capacidade de perseverar raramente são estudadas na PSL, assim como os seus possíveis aspectos negativos. Os locais nos quais estas atividades de lazer são realizadas são tratados como ambientes ou cenários, sem maiores contextualizações ou aprofundamentos.

Por fim, as atividades definidas pelos tradicionais valores masculinos de ação, desafio e domínio denotam o que é “sério” ou valorizado no lazer, em oposição às atividades tradicionalmente consideradas femininas, como a criação de relacionamentos interpessoais significativos e espaços íntimos. Em suma, para Gallant (2017) o “lazer sério” se baseia em uma conceptualização androcêntrica, inerentemente positiva e apolítica do lazer, aspectos que geralmente são negligenciados em estudos realizados sobre este tema, no Brasil.

Os aspectos salientados neste texto, obviamente, apenas introduzem o tema. Deixo aberto, assim, o convite para que você amplie e aprofunde suas leituras, estudos e reflexões sobre a SLP para que possa fazer suas próprias análises, contribuindo com este debate.

Bibliografia

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Ribeiro, S. P.; Santos, E. H. A Prática do Futebol Amador na Cidade de Ibirité-MG sobre a Teoria do Lazer Sério de Robert Stebbins. LICERE – Revista do Programa de Pós-graduação Interdisciplinar em Estudos do Lazer, 23(4), 173-196, 2020. https://doi.org/10.35699/2447-6218.2020.26653

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