Ma Rainey – A voz suprema do Blues: Atravessamentos da identidade negra, ancestralidade e lazer durante gravações para um álbum de Blues¹


“A Voz Suprema do Blues” é um filme poderoso e impactante que une diversas temáticas, como os lazeres, a ancestralidade, a resistência e a cultura negra, além de outras que são apresentadas durante a longa-metragem. Destaco que a experiência de assistir esta obra, pode levar a sua relação com diversas teorias de pensadores negros e negras, como exemplo cito parte das teorias de bell hooks, Grada Kilomba e Franz Fanon. Neste texto, tento oferecer uma reflexão, ainda que breve, sobre ao menos um dos argumentos destes autores e autoras, fazendo uma relação sobre a sétima arte, questões étnicas raciais e o lazer.

Apresento uma breve exposição sobre o filme, que em resumo se trata da história de Ma Rainey, uma cantora de blues icônica, interpretada brilhantemente por Viola Davis, é também parte de uma biografia ambientada nos Estados Unidos da década de 1920. É um drama lançado em 2020, dirigido por George C. Wolfe e baseado na peça de teatro de mesmo nome, escrita por August Wilson. Um dos personagens coadjuvantes é Chadwick Boseman que interpreta o talentoso trompetista chamado Leeve. A trama se desenrola durante uma sessão de gravação de Ma Rainey em Chicago. Enquanto ela e sua banda enfrentam dificuldades e conflitos internos, a tensão racial e as desigualdades na indústria musical são expostas. Ma Rainey enfrenta desafios e injustiças no mundo da música, lutando para preservar sua voz e sua identidade em um ambiente dominado pelo racismo e pela exploração. É justamente nesse contexto que as ideias de bell hooks, Grada Kilomba e Fanon encontram palco para serem discutidas.

bell hooks (2019) é enfatiza a importância da representação e da valorização da experiência negra. Em “A Voz Suprema do Blues”, vemos a personagem de Ma Rainey reafirmando sua negritude, sua sexualidade e sua autenticidade como mulher negra. Ela se recusa a ser moldada pelos padrões brancos e heteronormativos da indústria musical, reivindicando seu poder através de voz e de sua grandeza como artista, que naquele período já vendia uma quantidade significativa de discos. Cabe destacar que foi pioneira em “bater de frente” com a indústria naquele período.

Grada Kilomba (2019), por sua vez, é uma autora que aborda questões de raça, gênero e colonialismo. Em seu livro “Memórias da Plantação”, Kilomba questiona o silenciamento histórico dos povos colonizados e propõe formas de descolonizar o conhecimento. Da mesma forma, “A Voz Suprema do Blues” destaca a luta contra o silenciamento e a marginalização dos/as artistas negros/as, oferecendo uma narrativa que desafia as estruturas dominantes e dá voz àqueles que foram historicamente oprimidas. E a luta de diversos/as artistas negros e negras para se manterem no mercado como protagonistas, enfrentando os limites raciais de seu período histórico. Inclusive a trama mostra como parte da indústria se apropriava do talento de pessoas negras como Levee, ao passo que o produtor da banda pede para que ele fizesse uma letra e depois informou que não usaria. Todavia, a história desenvolvida propõe que ele utilizou com outra banda, ganhando lucros sem ter que pagar direitos autorais.

Em relação ao lazer, o longa-metragem destaca a importância da música como forma de resistência e transmissão do conhecimento ancestral através das gerações (pelas letras). O estúdio de gravação, local em que se desenvolve a maior parte do filme, é um lugar onde artistas negros/as têm a oportunidade de compartilhar suas histórias e expressar suas emoções, além das canções em conversas entre si, ou seja, em uma das formas de sociabilidade possível em condições como a apresentada. O estúdio se torna um ambiente em que os/as artistas (músicos da banca de apoio), a cantora e demais envolvidos desenvolvem, em certa medida, um senso de comunidade. E com esta sentença não quero afirmar nenhuma perfeição social, pelo contrário comunidades são capazes de sobreviver com ideias distintas sobre vários aspectos da vida. Assim, é importante afirmar que não existe homogeneidade dos pensamentos dos personagens, pelo contrário, expõe que vivências pessoais atravessadas pela questão racial, causam experiências distintas em situações similares. Em meu sentir, a forma em que os músicos da banda compartilham experiências dos racismos sofridos por eles e por pessoas próximas expõem o caráter das micro perspectivas das vidas negras. Além da maneira em que transmitem mitos sobre as pessoas negras em diversos espaços sociais, como a religião, onde é apresentado o mito de um homem negro que vendeu a alma ao diabo. Especificamente um diálogo entre estes músicos me chamou a atenção, assim, trago ele na íntegra para compartilhar com os leitores e as leitoras, com foco na maneira em que é tratado o divertimento nesta cena, o início da conversa é no minuto 17, do filme disponibilizado em um serviço de streaming.

Toledo: Esse é um problema dos irmãos de raça, só querem diversão. Morreu mais negros querendo se divertir, do que Deus consegue contar.

Levee: canta parte de uma música.

Toledo: O que se divertir significa? A vida é mais que diversão. Se não for, é uma péssima vida que estamos vivendo. Se isto é tudo que podemos ter na Terra.

Levee: Toca o trompete.

Slow Drag: Os negros se divertem desde antes de você nascer e continuaram se divertindo depois que você morrer.

Toledo: Ninguém está falando em melhorar a vida dos negros dos Estados Unidos. Ninguém está pensando em que tipo de vida deixaremos para os jovens negros. Só pensam em diversão. Só isso.

Levee faz um passo de dança.

Toledo: Isso me deixa enojado.

Slow Drag: A diversão é o que faz a vida valer a pena.

Toledo: Sei me divertir tanto quanto os outros. Sei me divertir como vocês, mas digo que a vida não é só diversão. Os negros tem que fazer mais do que se divertir o tempo todo.

Levee: O que você está fazendo? Fica aí com ideias pretensiosas sobre um mundo melhor para os negros. Mas o que está fazendo pra isso? Você toca sua música e corre atrás de rabo de saia como nós. O que está fazendo?

Toledo: Não sou só eu, eu disse todos. Acha que vou resolver os problemas sozinho? Eu disse nós. Entendeu. Todos os negros no mundo. Estou falando do que nós vamos fazer juntos, é disso que estou falando.

Acaba o diálogo e desenrola o filme…

No contexto do blues, a sociabilidade possibilitada as pessoas negras desempenharam um papel fundamental na história norte americana. O blues, originário das comunidades negras do sul dos Estados Unidos, nasceu como uma forma de expressão artística e de comunicação entre aqueles que viviam a dura realidade da segregação racial e da opressão, problemas advindos da escravização. Os/as artistas de blues encontravam nos espaços de lazer, como os clubes noturnos, um refúgio onde podiam compartilhar suas vivências e encontrar apoio mútuo, ou seja, os espaços de Blues ganham contornos de ancestralidade em diversos sentidos, como aponta Fanon (1956). Poderia indicar inclusive como um espaço aquilombado, mas isso é conversa para outro texto.

Determinadas canções do blues, contêm letras carregadas de emoção, narravam histórias de amor, dor, luta e superação. Através da melodia e da performance, os/as artistas transmitiam suas experiências de forma poderosa e comovente, tocando as almas de quem os ouvia. Essa capacidade de transmitir sentimentos e narrativas através da música permitia que as vozes negras fossem ouvidas além das limitações impostas pela sociedade racista da época.

O blues, demonstra como a arte em seu aspecto de lazer, pode ser utilizado como uma ferramenta de resistência, transmissão de conhecimento ancestral e empoderamento. Parte das canções do blues foram/são um grito de liberdade e denúncia das injustiças enfrentadas pela comunidade negra.

Assim, em “A Voz Suprema do Blues”, podemos observar como a sociabilidade entre os/as artistas e a potência da música são retratadas como elementos-chave na história do blues e consequentemente das pessoas negras. Esses momentos de lazer e interação são não apenas momentos de descontração, mas também espaços de criação coletiva, transmissão de conhecimento ancestral entre gerações, de resistência cultural e de fortalecimento da identidade negra. Através da música, o blues transcendeu as barreiras raciais e sociais, deixando um legado duradouro, influenciando inúmeras gerações de artistas e a comunidade negra em diáspora pelo mundo.

Para finalizar é necessário apresentar 3 elementos do trabalho. O primeiro a deficiência na discussão conceitual, por se tratar de um texto para blog, tomei a decisão de não aprofundar e sim fazer uma análise breve. Tenho ciência das implicações da escolha e disposto a receber as críticas por isto. Segundo foquei na intersecção dos conceitos com foco nas pessoas negras, mas tenho ciência e defendo que o Blues teve ao longo dos tempos influências de pessoas não negras e outras culturas, como no caso do samba, o que não tira ou deprecia sua raiz negra. E por fim, a baixa apresentação referencial na discussão do cinema como um todo. Meu foco de estudos não passa por este campo, mas faz parte das minhas inquietações cotidianas. Desta maneira, não tive referências para esta discussão, neste momento.

Referências Bibliográficas

hooks, bell. Não sou uma mulher?: Mulheres negras e feminismo. São Paulo: Editora Perspectiva, 2019.

FANON, Frantz. Intervenção no I.° Congresso dos Escritores e Artistas Negros em Paris, em Setembro de 1956. In: PRÉSENCE AFRICAINE. Número especial, junho-novembro de 1956.

KILOMBA, Grada. Memórias da Plantação: Episódios de Racismo Cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.

Filme

VOZ SUPREMA DO BLUES. Direção: George C. Wolfe. Produção: Denzel Washington, Todd Black, Dany Wolf. [S.l.]: Escape Artists, 2020. 1 filme (94 min)


Notas

[1] Este trabalho foi uma restrita de uma das avaliações feitas para a disciplina “LAZER, NEGRITUDE E CORPOREIDADE” lecionada pela profa. Dra. Elisangela Chaves. Lugar de muito acolhimento e discussões científicas sobre a temática indicada em seu título.